Cultura

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Sistema carcerário é fábrica de degeneração humana: como mudar isso?


Em meados de janeiro de 2014 estava eu debruçado sobre a interessante obra de Alberto Carlos Almeida, “A cabeça do brasileiro”, uma provocante análise sobre a opinião dos brasileiros em diversas áreas de nossa sociedade – ética, sexualidade, economia, família, política, entre outros assuntos, constituíam a plêiade complexa de materiais da pesquisa realizada pelo autor com o auxílio do americano Clifford Young – quando recebi uma ligação do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de Alagoas, Thiago Bomfim. 

Era uma noite aprazível, como é de costume, em nossa Palmeira dos Índios, típica cidade interiorana do nordeste, com dias de calor intenso e noites agradavelmente frescas, quando, ao celular, chegou-me o convite. Diante das reincidentes discussões sobre o sistema carcerário brasileiro e das incontáveis violações aos direitos humanos, sobretudo, por quem deveria fomentá-los e protegê-los, a direção da Ordem dos Advogados do Brasil resolveu constituir uma comissão permanente de acompanhamento do sistema.

Com um representante de cada estado da federação, a tarefa delegada seria a de acompanhar o funcionamento do sistema carcerário como um todo, desde a aplicação dos recursos públicos ao tratamento oferecido aos ingressos no cárcere. A ligação telefônica, portanto, serviu para me convocar para essa espinhosa tarefa, o que de plano aceitei. Reunidos dados preliminares fornecidos pelos sítios eletrônicos da Superintendência de Administração Penitenciária de Alagoas e do Ministério da Justiça, além da experiência adquirida tanto pela militância prática quanto pelo magistério na área penal, dirigimo-nos até Brasília, com o propósito de tomarmos posse e participarmos da primeira reunião de trabalho da comissão.

A abertura dos trabalhos, no dia 04 de fevereiro de 2014, contou com a palestra de um de nossos maiores penalistas, o professor Miguel Reale Jr., que naquela oportunidade conclamou a todos os presentes a pensarmos em soluções que não permitissem que o sistema carcerário servisse apenas, como hoje serve, como medida exclusivamente aflitiva. Reale foi enfático ao afirmar que “todas as discussões teóricas que podem ser feitas de que a pena visa à intimidação ou a prevenção geral positiva, a reforçar o valor na sociedade ou a recuperação, cede diante do primeiro sentimento daquele que é o grande personagem do Direito Penal que é o réu, que é o condenado. É perguntar ao condenado como é que ele sente a pena que lhe é imposta: castigo. Como é que a sociedade percebe a aplicação da pena: castigo”.

Ao criticar o tratamento que conferem os estados ao apenado, Reale arremata reconhecendo que a pena é sim um castigo, “mas que ela não pode ser de modo algum apenas isso”. “A pena tem vários significados, dentre eles, o de viabilização de que o condenado ao sair tenha a possibilidade de superar os conflitos que são naturais da vida social, ainda mais numa vida social de conflitos e de competição como é a vida atual, capacidade de superar esses conflitos sem recorrer ao delito, como a via mais fácil de satisfação de desejos. É, portanto, uma grande tarefa”, disse o jurista.

Assim como são tratados os condenados definitivamente, também o são os presos provisórios, que muitas vezes se misturam, ao arrepio da Lei de Execuções Penais e da Constituição Federal. Segundo os dados atuais, quase metade da população carcerária brasileira é constituída de presos nesta condição. Dessa forma, de que modo obrigar os estados a cumprirem todo um emaranhado de normas humanitárias que já existem e estão positivadas internamente, mas que na imensa maioria dos casos não são efetivadas? Como dotar os órgãos de controle e fiscalização de instrumentos capazes de efetivar essas normas?  Como fazer o judiciário, especialmente juízes de primeiro grau, perceber que, num Estado verdadeiramente democrático, a liberdade deve ser a regra no desenrolar de um processo penal? Como fazê-los perceber que “ordem pública” não é requisito substancialmente válido para decretação de prisões provisórias, posto que a expressão notadamente tem viés autoritário (remonta os ideais fascistas!) e carece até mesmo de determinação semântica?  Como fazer tudo isso?! É esse o desafio que se apresenta aos membros da comissão.

Ir além das propostas de mais presídios, mutirões e revisões processuais apregoados por autoridades constituídas (por má-fé ou ingenuidade) como redentores de toda essa problemática, é nossa obrigação.

Os dados disponibilizados à nossa comissão pelo Departamento Penitenciário Nacional dão conta de que há a necessidade de criação de mais de duzentas mil vagas no sistema, o que deverá custar mais de cinco bilhões de reais, isso contando com uma estagnação da população carcerária, o que se mostra impraticável atualmente. Ver autoridades falarem com naturalidade sobre mutirões e revisão processual é a prova inequívoca de que o sistema penal é, de regra, falho, ineficiente e antidemocrático.

Avançar nas discussões que dizem respeito ao sistema penal, ao seu funcionamento e ao modo de seleção de casos conflituosos. É o mínimo que se espera de um colegiado de advogados que norteará os próximos passos de uma entidade que historicamente têm contribuído para a consolidação dos princípios democráticos no país.

Não bastasse tudo isso, preocupa-nos ainda o fato de que grande parte da sociedade leiga tende a legitimar o status quo. Interessa a ela, em grande parte, que os rotulados de desviados estejam presos, e não como estão no cárcere sendo tratados. Tudo isso fruto de uma cultura punitivista em franca ascensão e celebrizada por boa parte da mídia, conforme podemos ver retratada na obra que inicialmente citamos, de Alberto Carlos Almeida. Para ficarmos em apenas um exemplo, pela pesquisa realizada em 2002, que serviu de base para o livro “A cabeça do brasileiro”, 1/3 da população considera correto que a polícia bata nos presos para obter confissões (pág. 135).

A construção desse senso comum punitivista, a propósito, é permeada de incoerências, como bem ressaltado no livro acima. É comum vermos as pessoas exaltarem os preceitos cristãos, mas ao mesmo tempo apoiarem a ideologia do “bandido bom é bandido morto”, até que, o tal bandido, não seja um parente próximo, claro! Não teria sido Jesus o autor da frase: “amai vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam...”?!

Não nos exigirá esforço, portanto, perceber, ao folear alguns livros de história ou estatísticas sobre reincidências, que todos os tipos de medidas atrozes ou cruéis já foram utilizadas (e, em muitos locais, ainda são – Veja-se Guatánamo, do “democrático” Estados Unidos!) pelos homens nos mais variados pontos do globo. Se em alguns desses lugares isso tivesse funcionado como medida eficaz no controle da criminalidade, desconfio que saberíamos.

Talvez tenha chegado a hora de levarmos mais a sério ideais outrora denominados de utópicos, como aqueles acolhidos pelo abolicionismo de Louk Hulsman (Por que não?!). Invertermos esse processo ardiloso de carcerização atualmente em moda é uma necessidade, sob pena de passarmos a conviver com maior frequência com casos como o de Pedrinhas, no Maranhão, tendo repercutido internacionalmente.

Ainda que sejamos partidários de uma utopia, de que nos serviria ela senão para nos manter caminhando rumo a uma sociedade ideal, como bem nos lembra Eduardo Galeano, que, provocado, certa vez disse: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.

De nossa parte, na comissão de acompanhamento do sistema carcerário brasileiro, instituída pela Ordem dos Advogados do Brasil, como representante de Alagoas, com a colaboração dos colegas da área, não se espere outra coisa senão um esforço redobrado no sentido de um dia vivermos a utopia do pleno respeito à dignidade humana, fundamento de qualquer democracia, dentro ou fora do cárcere. Ao invés de um choque de prisionização, com o qual estamos acostumados desde o Brasil colônia, cujos resultados são muito bem conhecidos, é chegada a hora de um choque de liberdade e respeito aos direitos humanos, estejam esses humanos rotulados ou não pelo sistema penal.  

* a comissão volta a se reunir no próximo dia 14 de março em Brasília para discutir com mais profundidade os problemas e apontar soluções. Por aqui, além de receber sugestões, vou atualizando as informações sobre os debates na comissão.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Segurança Pública brasileira: uma privatização disfarçada

Não se exige muito esforço acadêmico para sustentar que a liberdade é um daqueles bens alçados à categoria de fundamentais para a humanidade. Foi, inclusive, a pedra angular daquela que se consagrou como a mais destacada revolução da história: a revolução francesa (que não me leiam os partidários de Edmund Burke!).

São muitas as variações da liberdade (de crença, de expressão, de pensamento, enfim), mas, para efeito deste ensaio, vamos nos ater ao direito de ir, vir e permanecer, ou seja, à liberdade ambulatorial. Exercê-la, no entanto, mesmo em uma democracia, tem sido tarefa das mais complicadas. É sobre ela que a efetivação das políticas de segurança reflete direta e incisivamente.

Como sabemos, por força de nossa Constituição Federal (art.144), a responsabilidade sobre a segurança pública recai sobre o Estado, partilhada entre governo federal e os estados federados de acordo com os bens afetados e os respectivos interesses.

Não obstante essa previsão, o Brasil, desde o início da década de 1970, permite oficialmente o funcionamento de segurança privada. Atualmente o serviço é regulado pela Lei n°. 7.102, de 20 de junho de 1983.

Vigilância patrimonial, transporte de valores, escolta armada, segurança pessoal, entre outras atividades relacionadas já são serviços com contingente humano superior ao de segurança pública. Os dados, colhidos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, realizada em 2005, revelam um crescimento assustador do setor em nosso território, cuja aceleração acentuada se identifica a partir da década de 1990.

São cerca de 1.648.570 de pessoas envolvidas em atividades de segurança direta ou indireta, computando-se formais e informais. Dados da Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores (Fenavist) registram oficialmente mais de 557,5 mil vigilantes efetivamente em atuação só em 2005.

Enquanto a segurança privada avançou (e avança!) meteoricamente desde seu surgimento, o Estado praticamente permaneceu inerte neste setor diante da avalanche de criminalidade, importando-se apenas no recrudescimento das previsões penais. Como se o problema fosse a legislação penal e processual penal e não a precariedade da estrutura que as operam.

Dessa forma, uma análise ainda que superficial, denuncia a disparidade de crescimento entre os setores. Para se ter uma idéia, em 2005, segundo informa o sítio virtual do Ministério da Justiça, havia 574,6 mil profissionais de segurança pública, entre policiais militares, civis e bombeiros.

Só com esses números, já é possível afirmar, em termos meramente quantitativos, a superioridade do setor privado (em franca expansão) sobre o setor público nessa área de proteção de um direito fundamental como a liberdade ambulatorial e a própria vida.

Uma avaliação mais aprofundada pode ser encontrada no artigo do professor André Zanetic, veiculado na revista brasileira de segurança pública, ano 3, edição 4, de março/abril de 2009, de onde retiramos alguns dos números apresentados.

Diante dos problemas que se apresentam, da ineficiência no combate às causas da criminalidade, do sucateamento estrutural, da falta de integração e capacitação dos aparelhos de segurança pública frente à criminalidade organizada, é crescente a tese de privatização de diversos setores dessa área. O célebre exemplo pode-se encontrar no modismo americano de privatização de presídios que tem se implantado aos poucos no Brasil.

Se essa é a solução para finalmente se respeitar direitos e garantias constitucionais, ainda não se tem consenso, mas, levando-se em conta a experiência americana dos presídios, a resposta parece ser negativa. Lá, como cá, também ocorrem abusos, como aponta Loïc Wacquant em seu “prisões da miséria”, sobretudo quando o sistema visa o lucro.

O fato é que o Estado tem contado sim com uma quantidade surpreendente de dinheiro privado no combate à criminalidade. Isso sem computar despesas cada dia mais freqüentes com cercas elétricas e câmeras de vigilância, como ingredientes importantes para a prevenção de ataques aos bens alheios.

Já é, portanto, o cidadão, que além de contribuir através dos tributos que paga, e financia todo esse sistema privado de segurança, quem tem amenizado os efeitos da ineficiência estatal nessa seara.

Cabe, agora, ao Estado brasileiro, mudar sua mentalidade arcaica de operar a segurança pública, profissionalizar-se, colher e gerir melhor as informações, sistematizar as ações com outras áreas da administração e, especialmente, qualificar, valorizar e motivar o seu mais valioso ingrediente: o material humano, responsável pelo funcionamento de toda essa complexa engrenagem.

Se assim não for, continuaremos com os mesmos problemas, “enxugando gelo”, como diz o ditado. Continuaremos com uma segurança (teoricamente) pública sendo exercida (pratica e substancialmente) por entes privados.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Qual o melhor sistema penal, o das leis ou o da opinião pública?

Uma das exigências de um Estado Democrático de Direito é a constante justificação dos atos que se realizam nos seus domínios. Não à toa, alguns dos mais renomados autores constitucionalistas o chamam simplificadamente de “o Estado que se justifica”.

Na Carta Constitucional brasileira, por exemplo, é lapidar o mandamento do art. 93, inciso IX, que fulmina de nulidade as decisões não fundamentadas pelos órgãos do judiciário.

Mas onde encontramos o paradigma justificador? Ora! Não poderia ser em outro local que não na Constituição Federal e nos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte, o que nos remete à racionalidade, portanto, à serenidade e segurança, típicos de uma verdadeira democracia.

Nessa tarefa de justificação, o uso de chavões populistas sempre foi o meio mais cômodo e sedutor desde tempos remotos, sobretudo no manuseio do Direito Penal e Processual Penal.  São incontáveis os momentos da história do mundo em que a opinião pública se sobrepôs aos princípios democráticos, rompendo, dessa forma, com a racionalidade.

Naturalmente que há o argumento falho de que numa democracia move-se o Estado pela opinião da maioria. Sim, é uma possibilidade (a regra, diga-se)! No entanto, nenhuma maioria, numa democracia substancial, para homenagearmos Ferrajoli, pode se sobrepor às garantias historicamente conquistadas. A obra de Bobbio é recheada destas assertivas, que, inclusive, serviram-nos de inspiração para o título deste ensaio. 

Desde o caso Dreyfus, na França, passando pela ascensão de Hitler (eleito, frise-se!), na Alemanha, até os dias de hoje, autoridades dos mais diversos níveis, de regra, preferem não abandonar a zona de conforto, norteando suas atuações sem a pretensão de defraudar a expectativa social. Optam, assim, por decisões que não comprometam suas posições ou que não exijam maior esforço de justificativa perante um sentimento já instalado.

Temos nos acostumado, infelizmente, com uma retórica democrática aliada a atitudes populistas que flertam com o totalitarismo. E isso, notadamente, é pernicioso ao sistema penal e processual penal democrático, atualmente, os maiores gestores de expectativas sociais, na esteira do que sustenta o mestre português Rui Cunha Martins.  

Não temos a mínima pretensão de fazer pouco caso da opinião pública (longe disso!), mas é preciso tomá-la sempre com reservas, em virtude dos processos geralmente conturbados e viciados de sua formação. O respeito cego à opinião da maioria, o senso comum, a representação do sentimento do povo, são elementos que nos remetem à imprevisibilidade, à insegurança, à completa incerteza na incolumidade das garantias hoje postas (ainda que só no papel!).

Assim, as justificativas do Estado, especialmente na seara penal e processual penal, devem estar atreladas, como mostramos, à Constituição e aos tratados internacionais em direitos humanos dos quais o Brasil é parte.

Temos sim um ordenamento que nos permite sustentar o argumento de que nossas garantias são mais importantes que qualquer poder estatal . Nosso problema são as práticas!

Convivemos hoje com a forma mais traiçoeira (e difícil de ser combatida!) de violação de garantias, como astutamente levantado por Ferrajoli em seu “Direito e Razão”. Aquela que se utiliza de uma retórica democrática, cuja prática a contradiz, pelo viés inquisitivo camuflado.

Com isso, permitindo o enraizamento de matizes demagógicas no sistema penal, enfraquecendo garantias reconhecidas em um processo constitucional, violando o pacta sunt servanda, temos, aos poucos, retirados os cadeados da caixa de pandora totalitária, adubando um terreno formalmente democrático para o surgimento de heróis, como foi no passado não muito distante.

Por fim, um universo paralelo vai se formando. Somos cada vez mais familiarizados com os paradoxos. O Estado vai se deixando conduzir, na resolução de conflitos através do sistema penal, pela volatilidade (aqui, recorde-se a obra Bauman) da opinião pública, por pesquisas de opinião, que, por sua vez, vem servindo de “justificativa” para a supressão de garantias. Esquece-se a Constituição!

Vivemos numa espécie de sítio do pica pau amarelo, onde o que deveria ser, não é, como na música de Gilberto Gil, “marmelada de banana, bananada de goiaba, goiabada de marmelo”, como se quiséssemos, portanto, colher a paz plantando a guerra.

A resposta a nossa pergunta inicial parece óbvia, mas o problema é justamente esse. Na pós-modernidade em que vivemos, o óbvio parece ter deixado ser a regra. 

domingo, 1 de dezembro de 2013

Segurança pública e o medo: um gigante útil

No estágio atual, diante da ineficiência estatal em dar respostas aos anseios da sociedade nas mais diversas áreas, mas, para efeito de nossa apertada análise, especialmente na estrutura de segurança pública, é cada vez mais necessário rediscutir “fórmulas” para a busca da efetividade normativa.

Temos, no papel, um arcabouço de normas que justificariam um Estado Democrático e Social de Direito, mas que na prática dos órgãos do sistema penal, como bem sabemos, acabam sendo sufocadas pelo argumento da utilidade, da eficiência e da necessidade. A ideia organicista e funcionalista de que tudo se justifica (ou se legitima) em nome do são sentimento do povo brasileiro é de arrancar rasgados elogios de “democratas” da estirpe de Hitler.

O fato é que, nessa tarefa de gestor de expectativas, acossado pela avalanche de cobranças, o Estado tem recorrido a fórmulas velhas, peculiares em regimes autoritários, transformando o “Estado de Direito” em “Estado de Polícia”, como se, em outros tempos, isso já não tivesse sido testado. O resultado, todos nós conhecemos.

O Estado de Direito seria, nesse sentido, para citar o português Rui Cunha Martins, quando de sua participação no II Congresso Internacional de Ciências Criminais, realizado em homenagem ao mestre Luigi Ferrajoli em outubro deste ano no Rio de Janeiro, uma espécie de defraudador de expectativas com suas fórmulas garantistas. A sociedade cobra celeridade e eficiência que, na maioria das vezes, tem "justificado" a supressão de garantias.
Nesse contexto, interessa às autoridades que exercem inebriadamente o poder, estimular uma cultura do medo, esse gigante negro da alma de que tão bem falou Emilio Mira y López. Assim, quanto mais amedrontada estiver a sociedade, mais complacente com arbitrariedades ela será, mais abusos ela tolerará diante desse gigante, bastando, obviamente, que a motivação esteja calcada no “bem comum”.

Sobre isso e por fim, prefiro que, por mim, fale o escritor Mia Couto. Em 2011, na conferência de Estoril sobre segurança, Couto fez uma análise extremamente interessante sobre o uso do medo e o comportamento social complacente diante de abusos, transcrita abaixo.

Aos que preferem assistir, aqui o link http://www.youtube.com/watch?v=jACccaTogxE

Transcrição da intervenção de Mia Couto na Conferência do Estoril 2011

Bom,

Nada mais inseguro do que um escritor numa conferência sobre segurança, um escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e na anterior edição… preciso de um abrigo, preciso de um refúgio… é um texto que vou ler… o presidente tinha dito que eu devia falar espontaneamente... não sou capaz em sete minutos. Eu escrevi este texto que vou ler e chama-se Comemorar o Medo.

 Comemorar o Medo

O medo foi um dos meus primeiros mestres.

Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos actuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.

Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinaram a recear os desconhecidos. Na realidade a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e conhecidos.

Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos.

Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.

O medo foi afinal o mestre que mais me fez desaprender.

Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional. Os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência e um ateu barbudo com um nome alemão.

Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis e Carl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história e, a mais grave dessa longa herança de intervenção externa, é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo a oriente e a ocidente e, por que se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação, precisamos de intervenção com legitimidade divina.

O que era ideologia passou a ser crença. O que era política tornou-se religião. O que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas.

A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem:

Para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.

Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível.

Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo estas:

ü  Por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento?

ü  Por que motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilião e meio de dólares em armamento militar?

ü  Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exactamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi?

ü  Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra, essa arma chama-se fome!

Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome.

O custo para superar a fome mundial seria uma fracção muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo uma em cada três mulheres, foi ou será, vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo facto simples de serem mulheres.

A nossa indignação porém é bem menor que o medo!

Sem darmos conta fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha, a Grande Muralha, que foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra, são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos mas não há hoje no mundo um muro que separe os que têm medo dos que não têm medo.

Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente.

Citarei Eduardo Galiano acerca disto, que é o medo global, e dizer:

Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras e, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.

Muito obrigado.