Cultura

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Estariam mesmo a violência e a criminalidade em ascendência?


Inúmeras são as formas de interpretar a realidade. Podemos fazê-la por meio do senso comum, das artes, da teologia, da filosofia e da ciência. Pelo menos essas são as formas que poderíamos destacar no contexto deste nosso espaço.

Numa democracia, portanto, somos livres para aderirmos àquela que melhor se adeque às nossas necessidades, desde que haja, obviamente, o respeito às opções alheias. Mas, difícil mesmo, é aderir às formas que deponham contra as interpretações mais difundidas na sociedade.

Não é fácil, é bem verdade, “remar contra a maré”, defender pontos de vista que não seguem, por exemplo, o senso comum, as artes e, sobretudo, a teologia, ramos que, em nosso entender, estão menos comprometidos com a racionalidade do que a filosofia e a ciência.

O método cartesiano de racionalização, hoje tão difundido, apesar de críticas pontuais que vem sofrendo ao longo dos séculos, veja-se, a propósito, Antonio R. Damásio, apresenta-se como um dos mais confiáveis e seguros, especialmente quando faz parte de nossa rotina o compromisso com a leitura, com o estudo dedicado dos mais variados temas.

Diante disto, temos sido expostos com frequência pela grande mídia à máxima de que vivenciamos as escaladas da violência e da criminalidade. A cada dia somos apresentados a uma série de novos personagens, rotulados com títulos nada honoríficos nos meios de comunicação de massa.

E com que intenção se faz isso? Para discutir o assunto? Talvez sim, talvez não... Mas o que é certo mesmo é que as empresas de mídia vivem de investimentos, precisam pagar os seus profissionais, manter a sua estrutura, e, para isso, precisam de acessos, de audiência, de jornais, revistas e espaços publicitários vendidos, o que se consegue com mais eficiência fazendo ressoar aquilo que chama a atenção das massas, seu público. O que melhor do que o crime para isso? Assim, quanto mais perverso o fato se apresentar, mais atrativo ele será. Nesse contexto, atuar no limite da ética profissional (alguns até a ultrapassam) tem sido uma constante.

Como consequência desse comportamento, além de um círculo vicioso difícil de ser rompido, temos a sensação de que a regra de eventos na sociedade parece ser o crime, quando na verdade não é.

Fosse essa a regra, muito provavelmente eu não estivesse neste momento me permitindo compartilhar minhas ideias neste espaço e fazendo planos de, mais tarde, “dar um rolezinho”. O crime, portanto, é a exceção, o que nos permite fazer planos de interação social com certa naturalidade, apesar dos riscos inerentes a essas atividades em toda e qualquer sociedade.

Há alguns dias estive debruçado sobre a obra de Steven Pinker, “Os anjos bons de nossa natureza – por que a violência diminuiu”, um neurocientista canadense que dedicou parte de sua vida ao estudo da violência e da criminalidade no contexto histórico. Um livro que, como se percebe prontamente, confronta o senso comum e, por consequência, o que constantemente é retratado na mídia, ou seja, sustenta uma ideia que dificilmente será aceita pelas massas.

O bombardeio de informações diárias sobre eventos criminosos nos faz acreditar no contrário, eclipsando a tese de Pinker.

Como ele mesmo explica no prefácio, nossas mentes tendem a estimar as probabilidades com base na facilidade com que se consegue recordar exemplos, “é mais provável que cenas de carnificina, e não imagens de pessoas morrendo de velhice, sejam transmitidas para as nossas casas e fiquem gravadas em nossa memória. Por menor que possa ser a porcentagem de mortes violentas, em números absolutos elas sempre serão bastantes para encher o noticiário à noite, e com isso as impressões das pessoas sobre a violência serão desvinculadas das verdadeiras proporções”.

Pinker, corajosamente, apresenta-nos uma perspectiva diferente e, flagrantemente, coerente com os números registrados pela história da violência e da criminalidade no mundo. Sob esse ângulo (global), há um declínio, e isso é evidente!

Estamos menos propensos, por exemplo, a uma guerra mundial, a eventos que nos levariam a massacres como os observados nas grandes guerras de nossa história. O desenvolvimento de nossos anjos bons (empatia, senso moral, autocontrole e a razão), além do interesse econômico, foi crucial para o período de longa paz em que vivemos.

Ainda que mudemos a perspectiva, e voltemos nossa atenção à violência urbana, o que nos remete ao contexto local, a tese não se mostra imprestável. Assim, não se recomenda interpretar a realidade com base no número de vezes que a violência e a criminalidade são veiculadas na imprensa. É preciso um pouco mais de cuidado nessa análise, que não pretendo fazer com profundidade nesse momento, pois minha pretensão é, por enquanto, provocar a discussão.

Além dos números midiatizados, aqueles apresentados pelos órgãos oficiais também precisam passar por um processo de depuração. A divulgação, corroborada muitas vezes por ambos, desses números não retratam a realidade. Ora porque muitas das atividades consideradas como criminosas não chegam a integrar as estatísticas oficiais (as chamadas cifras negras), ora porque os números, na imensa maioria dos casos, não levam em conta o resultado das investigações.

Sobre este último aspecto apresentado, Louk Hulsman, em seu clássico “Penas perdidas – o sistema penal em questão”, é esclarecedor quando afirma que “as estatísticas policiais, em nenhum caso, representam a medida da criminalidade de um país. Convém deter-se um pouco neste ponto. Lembremo-nos, inicialmente, que os números fornecidos pela polícia não são correspondentes aos `crimes´ ou aos `delitos´, que assim se tornam somente após o julgamento proferido pela justiça penal, correspondendo sim a quantidade de inquéritos encaminhados ao Parquet, o que é bem diferente. Este volume é muito maior, pois inclui os inquéritos que serão arquivados pelo Ministério Público e o número de processados que serão inocentados”.

Hulsman, no entanto, arremata sustentando que “as estatísticas policiais contam os casos de que a polícia se ocupa, não as pessoas indicadas ou os fatos praticados, instaurando-se um inquérito para cada ´caso`, de modo que um mesmo fato punível pode gerar um grande número de inquéritos...”.

Contudo, é imperioso que reflitamos a respeito de tudo quanto foi exposto. Não temos, em absoluto, a intenção de negar que a sensação de insegurança urbana é crescente, isso, como sabemos, é senso comum, mas estariam a violência e a criminalidade urbana realmente em linha ascendente? Ou teríamos aprimorado os mecanismos de percepção disso ao longo dos tempos?

Uma imprensa mais necessitada e interessada sobre o assunto, uma sociedade mais curiosa e crítica, um Estado mais honesto com os números, enfim, é preciso estudar e interpretar desapaixonadamente os números e depurá-los antes de uma conclusão segura sobre o assunto. É exatamente o que pretendo provocar com o este ensaio!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Sistema carcerário é fábrica de degeneração humana: como mudar isso?


Em meados de janeiro de 2014 estava eu debruçado sobre a interessante obra de Alberto Carlos Almeida, “A cabeça do brasileiro”, uma provocante análise sobre a opinião dos brasileiros em diversas áreas de nossa sociedade – ética, sexualidade, economia, família, política, entre outros assuntos, constituíam a plêiade complexa de materiais da pesquisa realizada pelo autor com o auxílio do americano Clifford Young – quando recebi uma ligação do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de Alagoas, Thiago Bomfim. 

Era uma noite aprazível, como é de costume, em nossa Palmeira dos Índios, típica cidade interiorana do nordeste, com dias de calor intenso e noites agradavelmente frescas, quando, ao celular, chegou-me o convite. Diante das reincidentes discussões sobre o sistema carcerário brasileiro e das incontáveis violações aos direitos humanos, sobretudo, por quem deveria fomentá-los e protegê-los, a direção da Ordem dos Advogados do Brasil resolveu constituir uma comissão permanente de acompanhamento do sistema.

Com um representante de cada estado da federação, a tarefa delegada seria a de acompanhar o funcionamento do sistema carcerário como um todo, desde a aplicação dos recursos públicos ao tratamento oferecido aos ingressos no cárcere. A ligação telefônica, portanto, serviu para me convocar para essa espinhosa tarefa, o que de plano aceitei. Reunidos dados preliminares fornecidos pelos sítios eletrônicos da Superintendência de Administração Penitenciária de Alagoas e do Ministério da Justiça, além da experiência adquirida tanto pela militância prática quanto pelo magistério na área penal, dirigimo-nos até Brasília, com o propósito de tomarmos posse e participarmos da primeira reunião de trabalho da comissão.

A abertura dos trabalhos, no dia 04 de fevereiro de 2014, contou com a palestra de um de nossos maiores penalistas, o professor Miguel Reale Jr., que naquela oportunidade conclamou a todos os presentes a pensarmos em soluções que não permitissem que o sistema carcerário servisse apenas, como hoje serve, como medida exclusivamente aflitiva. Reale foi enfático ao afirmar que “todas as discussões teóricas que podem ser feitas de que a pena visa à intimidação ou a prevenção geral positiva, a reforçar o valor na sociedade ou a recuperação, cede diante do primeiro sentimento daquele que é o grande personagem do Direito Penal que é o réu, que é o condenado. É perguntar ao condenado como é que ele sente a pena que lhe é imposta: castigo. Como é que a sociedade percebe a aplicação da pena: castigo”.

Ao criticar o tratamento que conferem os estados ao apenado, Reale arremata reconhecendo que a pena é sim um castigo, “mas que ela não pode ser de modo algum apenas isso”. “A pena tem vários significados, dentre eles, o de viabilização de que o condenado ao sair tenha a possibilidade de superar os conflitos que são naturais da vida social, ainda mais numa vida social de conflitos e de competição como é a vida atual, capacidade de superar esses conflitos sem recorrer ao delito, como a via mais fácil de satisfação de desejos. É, portanto, uma grande tarefa”, disse o jurista.

Assim como são tratados os condenados definitivamente, também o são os presos provisórios, que muitas vezes se misturam, ao arrepio da Lei de Execuções Penais e da Constituição Federal. Segundo os dados atuais, quase metade da população carcerária brasileira é constituída de presos nesta condição. Dessa forma, de que modo obrigar os estados a cumprirem todo um emaranhado de normas humanitárias que já existem e estão positivadas internamente, mas que na imensa maioria dos casos não são efetivadas? Como dotar os órgãos de controle e fiscalização de instrumentos capazes de efetivar essas normas?  Como fazer o judiciário, especialmente juízes de primeiro grau, perceber que, num Estado verdadeiramente democrático, a liberdade deve ser a regra no desenrolar de um processo penal? Como fazê-los perceber que “ordem pública” não é requisito substancialmente válido para decretação de prisões provisórias, posto que a expressão notadamente tem viés autoritário (remonta os ideais fascistas!) e carece até mesmo de determinação semântica?  Como fazer tudo isso?! É esse o desafio que se apresenta aos membros da comissão.

Ir além das propostas de mais presídios, mutirões e revisões processuais apregoados por autoridades constituídas (por má-fé ou ingenuidade) como redentores de toda essa problemática, é nossa obrigação.

Os dados disponibilizados à nossa comissão pelo Departamento Penitenciário Nacional dão conta de que há a necessidade de criação de mais de duzentas mil vagas no sistema, o que deverá custar mais de cinco bilhões de reais, isso contando com uma estagnação da população carcerária, o que se mostra impraticável atualmente. Ver autoridades falarem com naturalidade sobre mutirões e revisão processual é a prova inequívoca de que o sistema penal é, de regra, falho, ineficiente e antidemocrático.

Avançar nas discussões que dizem respeito ao sistema penal, ao seu funcionamento e ao modo de seleção de casos conflituosos. É o mínimo que se espera de um colegiado de advogados que norteará os próximos passos de uma entidade que historicamente têm contribuído para a consolidação dos princípios democráticos no país.

Não bastasse tudo isso, preocupa-nos ainda o fato de que grande parte da sociedade leiga tende a legitimar o status quo. Interessa a ela, em grande parte, que os rotulados de desviados estejam presos, e não como estão no cárcere sendo tratados. Tudo isso fruto de uma cultura punitivista em franca ascensão e celebrizada por boa parte da mídia, conforme podemos ver retratada na obra que inicialmente citamos, de Alberto Carlos Almeida. Para ficarmos em apenas um exemplo, pela pesquisa realizada em 2002, que serviu de base para o livro “A cabeça do brasileiro”, 1/3 da população considera correto que a polícia bata nos presos para obter confissões (pág. 135).

A construção desse senso comum punitivista, a propósito, é permeada de incoerências, como bem ressaltado no livro acima. É comum vermos as pessoas exaltarem os preceitos cristãos, mas ao mesmo tempo apoiarem a ideologia do “bandido bom é bandido morto”, até que, o tal bandido, não seja um parente próximo, claro! Não teria sido Jesus o autor da frase: “amai vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam...”?!

Não nos exigirá esforço, portanto, perceber, ao folear alguns livros de história ou estatísticas sobre reincidências, que todos os tipos de medidas atrozes ou cruéis já foram utilizadas (e, em muitos locais, ainda são – Veja-se Guatánamo, do “democrático” Estados Unidos!) pelos homens nos mais variados pontos do globo. Se em alguns desses lugares isso tivesse funcionado como medida eficaz no controle da criminalidade, desconfio que saberíamos.

Talvez tenha chegado a hora de levarmos mais a sério ideais outrora denominados de utópicos, como aqueles acolhidos pelo abolicionismo de Louk Hulsman (Por que não?!). Invertermos esse processo ardiloso de carcerização atualmente em moda é uma necessidade, sob pena de passarmos a conviver com maior frequência com casos como o de Pedrinhas, no Maranhão, tendo repercutido internacionalmente.

Ainda que sejamos partidários de uma utopia, de que nos serviria ela senão para nos manter caminhando rumo a uma sociedade ideal, como bem nos lembra Eduardo Galeano, que, provocado, certa vez disse: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.

De nossa parte, na comissão de acompanhamento do sistema carcerário brasileiro, instituída pela Ordem dos Advogados do Brasil, como representante de Alagoas, com a colaboração dos colegas da área, não se espere outra coisa senão um esforço redobrado no sentido de um dia vivermos a utopia do pleno respeito à dignidade humana, fundamento de qualquer democracia, dentro ou fora do cárcere. Ao invés de um choque de prisionização, com o qual estamos acostumados desde o Brasil colônia, cujos resultados são muito bem conhecidos, é chegada a hora de um choque de liberdade e respeito aos direitos humanos, estejam esses humanos rotulados ou não pelo sistema penal.  

* a comissão volta a se reunir no próximo dia 14 de março em Brasília para discutir com mais profundidade os problemas e apontar soluções. Por aqui, além de receber sugestões, vou atualizando as informações sobre os debates na comissão.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Segurança Pública brasileira: uma privatização disfarçada

Não se exige muito esforço acadêmico para sustentar que a liberdade é um daqueles bens alçados à categoria de fundamentais para a humanidade. Foi, inclusive, a pedra angular daquela que se consagrou como a mais destacada revolução da história: a revolução francesa (que não me leiam os partidários de Edmund Burke!).

São muitas as variações da liberdade (de crença, de expressão, de pensamento, enfim), mas, para efeito deste ensaio, vamos nos ater ao direito de ir, vir e permanecer, ou seja, à liberdade ambulatorial. Exercê-la, no entanto, mesmo em uma democracia, tem sido tarefa das mais complicadas. É sobre ela que a efetivação das políticas de segurança reflete direta e incisivamente.

Como sabemos, por força de nossa Constituição Federal (art.144), a responsabilidade sobre a segurança pública recai sobre o Estado, partilhada entre governo federal e os estados federados de acordo com os bens afetados e os respectivos interesses.

Não obstante essa previsão, o Brasil, desde o início da década de 1970, permite oficialmente o funcionamento de segurança privada. Atualmente o serviço é regulado pela Lei n°. 7.102, de 20 de junho de 1983.

Vigilância patrimonial, transporte de valores, escolta armada, segurança pessoal, entre outras atividades relacionadas já são serviços com contingente humano superior ao de segurança pública. Os dados, colhidos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, realizada em 2005, revelam um crescimento assustador do setor em nosso território, cuja aceleração acentuada se identifica a partir da década de 1990.

São cerca de 1.648.570 de pessoas envolvidas em atividades de segurança direta ou indireta, computando-se formais e informais. Dados da Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores (Fenavist) registram oficialmente mais de 557,5 mil vigilantes efetivamente em atuação só em 2005.

Enquanto a segurança privada avançou (e avança!) meteoricamente desde seu surgimento, o Estado praticamente permaneceu inerte neste setor diante da avalanche de criminalidade, importando-se apenas no recrudescimento das previsões penais. Como se o problema fosse a legislação penal e processual penal e não a precariedade da estrutura que as operam.

Dessa forma, uma análise ainda que superficial, denuncia a disparidade de crescimento entre os setores. Para se ter uma idéia, em 2005, segundo informa o sítio virtual do Ministério da Justiça, havia 574,6 mil profissionais de segurança pública, entre policiais militares, civis e bombeiros.

Só com esses números, já é possível afirmar, em termos meramente quantitativos, a superioridade do setor privado (em franca expansão) sobre o setor público nessa área de proteção de um direito fundamental como a liberdade ambulatorial e a própria vida.

Uma avaliação mais aprofundada pode ser encontrada no artigo do professor André Zanetic, veiculado na revista brasileira de segurança pública, ano 3, edição 4, de março/abril de 2009, de onde retiramos alguns dos números apresentados.

Diante dos problemas que se apresentam, da ineficiência no combate às causas da criminalidade, do sucateamento estrutural, da falta de integração e capacitação dos aparelhos de segurança pública frente à criminalidade organizada, é crescente a tese de privatização de diversos setores dessa área. O célebre exemplo pode-se encontrar no modismo americano de privatização de presídios que tem se implantado aos poucos no Brasil.

Se essa é a solução para finalmente se respeitar direitos e garantias constitucionais, ainda não se tem consenso, mas, levando-se em conta a experiência americana dos presídios, a resposta parece ser negativa. Lá, como cá, também ocorrem abusos, como aponta Loïc Wacquant em seu “prisões da miséria”, sobretudo quando o sistema visa o lucro.

O fato é que o Estado tem contado sim com uma quantidade surpreendente de dinheiro privado no combate à criminalidade. Isso sem computar despesas cada dia mais freqüentes com cercas elétricas e câmeras de vigilância, como ingredientes importantes para a prevenção de ataques aos bens alheios.

Já é, portanto, o cidadão, que além de contribuir através dos tributos que paga, e financia todo esse sistema privado de segurança, quem tem amenizado os efeitos da ineficiência estatal nessa seara.

Cabe, agora, ao Estado brasileiro, mudar sua mentalidade arcaica de operar a segurança pública, profissionalizar-se, colher e gerir melhor as informações, sistematizar as ações com outras áreas da administração e, especialmente, qualificar, valorizar e motivar o seu mais valioso ingrediente: o material humano, responsável pelo funcionamento de toda essa complexa engrenagem.

Se assim não for, continuaremos com os mesmos problemas, “enxugando gelo”, como diz o ditado. Continuaremos com uma segurança (teoricamente) pública sendo exercida (pratica e substancialmente) por entes privados.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Qual o melhor sistema penal, o das leis ou o da opinião pública?

Uma das exigências de um Estado Democrático de Direito é a constante justificação dos atos que se realizam nos seus domínios. Não à toa, alguns dos mais renomados autores constitucionalistas o chamam simplificadamente de “o Estado que se justifica”.

Na Carta Constitucional brasileira, por exemplo, é lapidar o mandamento do art. 93, inciso IX, que fulmina de nulidade as decisões não fundamentadas pelos órgãos do judiciário.

Mas onde encontramos o paradigma justificador? Ora! Não poderia ser em outro local que não na Constituição Federal e nos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte, o que nos remete à racionalidade, portanto, à serenidade e segurança, típicos de uma verdadeira democracia.

Nessa tarefa de justificação, o uso de chavões populistas sempre foi o meio mais cômodo e sedutor desde tempos remotos, sobretudo no manuseio do Direito Penal e Processual Penal.  São incontáveis os momentos da história do mundo em que a opinião pública se sobrepôs aos princípios democráticos, rompendo, dessa forma, com a racionalidade.

Naturalmente que há o argumento falho de que numa democracia move-se o Estado pela opinião da maioria. Sim, é uma possibilidade (a regra, diga-se)! No entanto, nenhuma maioria, numa democracia substancial, para homenagearmos Ferrajoli, pode se sobrepor às garantias historicamente conquistadas. A obra de Bobbio é recheada destas assertivas, que, inclusive, serviram-nos de inspiração para o título deste ensaio. 

Desde o caso Dreyfus, na França, passando pela ascensão de Hitler (eleito, frise-se!), na Alemanha, até os dias de hoje, autoridades dos mais diversos níveis, de regra, preferem não abandonar a zona de conforto, norteando suas atuações sem a pretensão de defraudar a expectativa social. Optam, assim, por decisões que não comprometam suas posições ou que não exijam maior esforço de justificativa perante um sentimento já instalado.

Temos nos acostumado, infelizmente, com uma retórica democrática aliada a atitudes populistas que flertam com o totalitarismo. E isso, notadamente, é pernicioso ao sistema penal e processual penal democrático, atualmente, os maiores gestores de expectativas sociais, na esteira do que sustenta o mestre português Rui Cunha Martins.  

Não temos a mínima pretensão de fazer pouco caso da opinião pública (longe disso!), mas é preciso tomá-la sempre com reservas, em virtude dos processos geralmente conturbados e viciados de sua formação. O respeito cego à opinião da maioria, o senso comum, a representação do sentimento do povo, são elementos que nos remetem à imprevisibilidade, à insegurança, à completa incerteza na incolumidade das garantias hoje postas (ainda que só no papel!).

Assim, as justificativas do Estado, especialmente na seara penal e processual penal, devem estar atreladas, como mostramos, à Constituição e aos tratados internacionais em direitos humanos dos quais o Brasil é parte.

Temos sim um ordenamento que nos permite sustentar o argumento de que nossas garantias são mais importantes que qualquer poder estatal . Nosso problema são as práticas!

Convivemos hoje com a forma mais traiçoeira (e difícil de ser combatida!) de violação de garantias, como astutamente levantado por Ferrajoli em seu “Direito e Razão”. Aquela que se utiliza de uma retórica democrática, cuja prática a contradiz, pelo viés inquisitivo camuflado.

Com isso, permitindo o enraizamento de matizes demagógicas no sistema penal, enfraquecendo garantias reconhecidas em um processo constitucional, violando o pacta sunt servanda, temos, aos poucos, retirados os cadeados da caixa de pandora totalitária, adubando um terreno formalmente democrático para o surgimento de heróis, como foi no passado não muito distante.

Por fim, um universo paralelo vai se formando. Somos cada vez mais familiarizados com os paradoxos. O Estado vai se deixando conduzir, na resolução de conflitos através do sistema penal, pela volatilidade (aqui, recorde-se a obra Bauman) da opinião pública, por pesquisas de opinião, que, por sua vez, vem servindo de “justificativa” para a supressão de garantias. Esquece-se a Constituição!

Vivemos numa espécie de sítio do pica pau amarelo, onde o que deveria ser, não é, como na música de Gilberto Gil, “marmelada de banana, bananada de goiaba, goiabada de marmelo”, como se quiséssemos, portanto, colher a paz plantando a guerra.

A resposta a nossa pergunta inicial parece óbvia, mas o problema é justamente esse. Na pós-modernidade em que vivemos, o óbvio parece ter deixado ser a regra.