Cultura

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Menores de 14 anos e relação sexual consentida: típico ou atípico?

O manuseio das normas jurídicas sempre foi uma atividade permeada de intensas discussões e controvérsias, principalmente entre juristas, sociólogos e filósofos. Saber encontrar a solução mais adequada diante do conflito é o mais cobiçado objeto dos desejos dos profissionais dessas áreas.

Não bastassem todas as dificuldades, os debates se intensificam quando os princípios, bens ou valores envolvidos gozam de um status de direito humano, assim como é o caso da dignidade da pessoa humana.

É justamente uma das facetas dessa dignidade que veio a ser protegida expressamente pelo legislador penal, por conta da Lei 12.015/2009, no título dos chamados crimes sexuais (artigos 213 a 234). A motivação para as adaptações ao nosso septuagenário código penal foi a necessidade de trazê-lo à sociedade “moderna”, cujos costumes degeneraram, dentre outras coisas, para reiteradas práticas de abuso sexual, especialmente contra crianças e adolescentes.

Sobre esse aspecto, importa-nos discorrer sobre o modelo encartado no art. 217-A, que estabelece pena de 08 a 15 anos de reclusão para quem pratica qualquer atividade sexual (ainda que consentida) com menor de 14 anos. Tão logo entrou em vigor o dispositivo (uma releitura do antigo art. 224, revogado pela 12.015/09), surgiram questionamentos sobre os limites de sua aplicação.

O novo artigo teria deixado espaço para interpretações que excluíssem a responsabilidade penal de alguém que praticou ato sexual com menor de 14 anos? Afinal, o consentimento de um menor de 14 anos para um ato sexual poderia ser considerado válido? É esse é o ponto nevrálgico!

Por mais que no processo interpretativo nos esforcemos para apontar a evolução de nossos costumes ao ponto de constatarmos que os menores de 14 anos de hoje não são mais aqueles seres de outrora enclausurados e impossibilitados de se nutrirem de todo tipo de informação (inclusive sobre sexo!), é inevitável o apego ao “espírito” da lei.

Dessa forma, válido ou não, por mais experiência sexual e informação que tiver o menor de 14 anos, tal consentimento não deve servir para afastar as consequências determinadas pelo art. 217-A, simplesmente porque o mesmo surgiu com a finalidade de dar efetiva proteção a um bem já alçado à categoria inalienável de direito humano, ou seja, à dignidade sexual.

Cabe ao maior imputável conscientizar-se de que não deve manter relações sexuais com menores de 14 anos, ainda que para isso sejam “convidados” por eles, sob pena de sofrerem com a responsabilização penal.

O ingresso cada vez mais precoce de crianças e adolescentes em atividades sexuais não sustenta argumentos de descriminalização por se afastar consideravelmente da intenção do legislador penal nesses casos.

Filiamo-nos, portanto, por força das circunstâncias acima descritas, até que nos apresentem razões mais fortes, ao entendimento de que essa presunção de vulnerabilidade é absoluta (ou seja, o fato é típico apenas pelo requisito da idade, havendo, naturalmente, a ciência do sujeito sobre isso), não comportando requisitos subjetivos (como tem insistido alguns tribunais), exigindo-se a indiferente análise da capacidade de discernimento do menor de 14 anos para a prática do ato sexual.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Liberação indiscriminada do aborto viola Constituição Federal

É ponto consensual entre os penalistas modernos que o Direito Penal deve se incomodar apenas com aquelas condutas indesejadas mais relevantes, portanto, realmente graves e intoleráveis. Não que isso implique na ausência de proteção a determinados bens ofendidos de formas mais sutis, cuja regulação deve recair sobre outros ramos, como, por exemplo, o Direito Civil.

A ideia de subsidiariedade que permeia o Direito Penal é proveniente do fato de que é por intermédio dele que se ameaça interferir diretamente em um dos bens mais caros ao ser humano: a liberdade de locomoção. Aliado a isso, não percamos de vista que sua força estigmatizante na sociedade desautoriza, num Estado (verdadeiramente) Democrático de Direito, seu uso indiscriminado (ou administrativo).

A partir dessa linha de raciocínio, surgem os defensores da chamada escola penal minimalista (destacando-se Eugenio Raúl Zaffaroni, Luís Flávio Gomes, Luigi Ferrajoli, entre outros), posicionando-se num patamar intermediário entre os punitivistas (sociedade leiga, boa parte do executivo e do ministério público, entre outros) e os abolicionistas (destacando-se Louk Hulsman, Nils Christie e Thomas Mathiesen).

Dito isto, é preciso que deixemos claro que o presente ensaio não tem a pretensão de se imiscuir no pano de fundo religioso frequentemente erguido e que geralmente contamina o debate sereno sobre o aborto. Nossa intenção é, rapidamente, levantar a discussão sobre questões de cunho técnico-jurídico, fomentando argumentos calcados no ordenamento posto.

Pois bem, antes mesmo de procurarmos saber se teria a mulher o direito de dispor livremente do feto, inclusive com a possibilidade de suprimi-lo, é preciso saber se, diante do bem jurídico envolvido (a vida humana intrauterina), pode o Direito Penal abolir por completo sua proteção. Obviamente que, se a resposta for negativa (como realmente parece ser), teremos poupado uma série preciosa de discussões (uma verdadeira perda de tempo!) sobre os fundamentos prós e contra o abortamento indiscriminado.

Indo direto ao ponto, basta uma consulta, mesmo que despretensiosa, aos primeiros artigos de nossa Constituição, especialmente ao artigo 5º, que daremos por inviável a adoção de uma escola penal abolicionista, que prescinde completamente da utilização do Direito Penal como instrumento de controle social. E é justamente no artigo citado que nossa Carta Magna garante a vida humana, dentro ou fora do útero.

Desta forma, por ser um dos bens constitucionais de maior valor, o que, sem dúvida, legitima a proteção penal, não se autoriza o seu completo desprezo por parte do legislador, ainda que se trate de vida humana intrauterina. Afinal, é vida!

Por consequência, é inevitável concluirmos que a liberdade do legislador penal na criminalização e descriminalização de condutas esbarra nos limites (mínimos e máximos) impostos por nossa Constituição Federal. Da mesma maneira que não permite excessos impondo garantias (como a presunção de inocência, por exemplo), impede-se a proteção deficiente de bens constitucionalmente prestigiados. Sobre este aspecto, são elucidativas as obras de Lênio Streck e Luciano Feldens.

Contudo, é de se reconhecer que a vida, mesmo gozando do mais alto prestígio constitucional, não é bem de integridade intocável. Há, em nosso Código Penal, circunstâncias que permitem a sua supressão, como é o caso da legítima defesa.

Em se tratando do tema a que nos propomos a discorrer (e o fizemos sucintamente, como se percebe), é preciso, para concluir, destacar que é falacioso o argumento de que é preciso legalizar o abortamento, pois o mesmo já recebe a devida atenção legal. São três as possibilidades autorizadas: quando a gravidez é proveniente de estupro ou traz risco de morte da para gestante (art. 128 do CP), e em casos de anencefalia, conforme orientação de nossa Suprema Corte.

Querer mais que isso, liberando o abortamento e desguarnecendo o feto por completo, como já alertamos, é afrontar garantia constitucionalmente expressa, o que só é possível ultrapassar por intermédio de um poder constituinte originário.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Mulheres: da "coisificação" à Lei Maria da Penha

Desde as primeiras aglomerações humanas a discriminação, calcada nos mais diversos fundamentos, aparece como prática frequente na dinâmica social. Neste aspecto, as mulheres são, sem dúvida, as vítimas mais emblemáticas deste tipo de tratamento, cuja distribuição e a valorização de papeis notadamente têm privilegiado historicamente os homens.

Relegadas aos trabalhos domésticos, vistas geralmente como instrumento de reprodução humana e tolhidas da participação do processo político, frutos das ideias difundidas pelo patriarcalismo, as mulheres começaram a reagir diante de sua “coisificação” na sociedade.  

É a partir da década de 50, com a descoberta da pílula, com os movimentos de contracultura e o engajamento na cobrança por direitos e garantias equânimes independente do gênero, que podemos perceber dois interessantes fenômenos: na medida em que conquistavam novos espaços, novos problemas se apresentavam, novas dificuldades precisavam ser superadas.

A abertura do mercado de trabalho para elas, por exemplo, trouxe a figura do assédio sexual, permeada pelo ranço machista até então dominante.

Tratamento igualitário com as mesmas oportunidades que os homens, sempre foram a espinha dorsal do discurso feminista. Fomentar um giro valorativo nos paradigmas culturais arcaicos até então praticados não era tarefa fácil e acabou demandando, para que as cobranças não ficassem apenas no discurso, a intervenção dos ramos do Direito, como um dos principais instrumentos de controle social.

Diante deste histórico de empoderamento, de relação de dominação, de subordinação, de opressão (física ou emocional) que acabaram contaminando o Direito, daí buscar-se justamente através dele formas de não reproduzir mais essa cultura, é imperioso reconhecer a constitucionalidade de iniciativas que, dentro de parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, procurem equalizar as diferenças entre os gêneros.

Assim sendo, neste contexto, apontada a existência de insistentes situações que colocam a mulher em condição de vulnerabilidade, é de se reconhecer a Lei Maria da Penha (11.340/06) como um mecanismo constitucional de otimização do princípio da igualdade, sob sua perspectiva substancial. Fazendo-se valer, desta forma, a máxima de um tratamento igual devido pelo Estado aos iguais, e, como no caso, um tratamento desigual devido aos desiguais.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Algo está errado: imprensa é mais confiável que o judiciário?

Numa sociedade como a nossa, orientada por princípios democráticos, a existência de instituições oficiais fortes, bem estruturadas, respeitadas e eficazes, reveste-se de uma importância singular. São elas que garantem as conquistas históricas até aqui observadas.

Quando o Estado, por suas ramificações, funciona nos limites do que está encartado em nossa Lei Maior, não há outra consequência senão a promoção de justiça social. É esse, portanto, o ingrediente mais significativo no combate às desigualdades, ao preconceito, à intolerância e, por consequência, à crescente criminalidade.

Nesse delicado papel, de gestor não apenas das normas, mas, sobretudo, de expectativas sociais, notadamente sobressai-se o ente a quem entregamos o poder de dar a “última palavra” em eventuais conflitos: o Judiciário.

Contudo, se falta credibilidade, por uma série de deficiências, no órgão garantidor das garantias, no dizer do mestre italiano Ferrajoli, ou seja, no templo guardião de nossos direitos, é sinal de que a democracia padece sorrateiramente. Vivemos, assim, sob a égide de uma democracia formal, reconhecida apenas no papel.

Desde 2008 pesquisas realizadas em diversos estados brasileiros ganham notoriedade nos grandes meios de comunicação apontando o grau de credibilidade das instituições públicas para sociedade e, obviamente, destacando a boa colocação da imprensa frente às mesmas.

Traduzindo: as informações transmitidas pela imprensa de um modo geral, têm mais chances de serem tomadas como verdadeiras e corretas do que uma decisão judicial, crivada pelo devido processo legal, pela ampla defesa, pelo contraditório e seus consectários.

Assusta-nos é a sutileza com que boa parte da grande mídia age neste processo de enfraquecimento das instituições do Estado. Como bem salientou a professora Alice Bianchini outro dia em sala de aula, as reportagens, na maioria das vezes, não citam a pena mínima do crime, ponto de partida obrigatório para o magistrado. Só se fala da pena máxima, desta forma, como dificilmente alguém é condenado à pena máxima, pelas garantias que existem, quando o sujeito é condenado bem próximo da mínima, a sociedade, que emocionalmente cobra sempre a máxima, fica frustrada, gerando sensação de impunidade e leniência.

Mas nossa preocupação não deve se conter a isso. Quais as reações das autoridades constituídas diante desse grave disparate? Seria uma análise crítica voltada para a melhoria das estruturas arcaicas e excessivamente burocráticas? Decididamente não! A solução mais empregada pode-se resumir em uma só palavra: Populismo!

É assim que, na maioria dos casos, revidam algumas autoridades diante do problema. Fórmula simples, baseada na retórica, que se bem manuseada, surte os efeitos desejados: encontram braços fraternos, aconchegantes, solidários, oferecidos por incautos, que, por sua vez, difundem, propagam, dão eco, apaixonam-se pela “causa”. É o casamento perfeito entre a ingenuidade (dos que propagam) e a má-fé (dos que propõem fórmulas populistas).

Aqui mesmo neste espaço temos insistentemente alertado para os perigos desses movimentos que rondam as bases de nossa jovem democracia, como também temos destacado a necessidade de mudança de paradigmas, mentais e estruturais.

Saltam aos olhos os defeitos que nossas instituições possuem (inclusive o judiciário) e, pela mentalidade e estrutura persistentes, acabam fomentando a perpetuação dos mesmos. É preciso cobrar sim, com veemência se preciso, mudança de rumo, de atitude, de postura, desde que seja, evidentemente, para promover uma maior aproximação com os princípios democráticos citados no início, pois somente desta forma estaremos exercendo uma verdadeira democracia substancial, fortalecendo as instituições e, consequentemente, nossas valiosas garantias.