Cultura

domingo, 1 de dezembro de 2013

Segurança pública e o medo: um gigante útil

No estágio atual, diante da ineficiência estatal em dar respostas aos anseios da sociedade nas mais diversas áreas, mas, para efeito de nossa apertada análise, especialmente na estrutura de segurança pública, é cada vez mais necessário rediscutir “fórmulas” para a busca da efetividade normativa.

Temos, no papel, um arcabouço de normas que justificariam um Estado Democrático e Social de Direito, mas que na prática dos órgãos do sistema penal, como bem sabemos, acabam sendo sufocadas pelo argumento da utilidade, da eficiência e da necessidade. A ideia organicista e funcionalista de que tudo se justifica (ou se legitima) em nome do são sentimento do povo brasileiro é de arrancar rasgados elogios de “democratas” da estirpe de Hitler.

O fato é que, nessa tarefa de gestor de expectativas, acossado pela avalanche de cobranças, o Estado tem recorrido a fórmulas velhas, peculiares em regimes autoritários, transformando o “Estado de Direito” em “Estado de Polícia”, como se, em outros tempos, isso já não tivesse sido testado. O resultado, todos nós conhecemos.

O Estado de Direito seria, nesse sentido, para citar o português Rui Cunha Martins, quando de sua participação no II Congresso Internacional de Ciências Criminais, realizado em homenagem ao mestre Luigi Ferrajoli em outubro deste ano no Rio de Janeiro, uma espécie de defraudador de expectativas com suas fórmulas garantistas. A sociedade cobra celeridade e eficiência que, na maioria das vezes, tem "justificado" a supressão de garantias.
Nesse contexto, interessa às autoridades que exercem inebriadamente o poder, estimular uma cultura do medo, esse gigante negro da alma de que tão bem falou Emilio Mira y López. Assim, quanto mais amedrontada estiver a sociedade, mais complacente com arbitrariedades ela será, mais abusos ela tolerará diante desse gigante, bastando, obviamente, que a motivação esteja calcada no “bem comum”.

Sobre isso e por fim, prefiro que, por mim, fale o escritor Mia Couto. Em 2011, na conferência de Estoril sobre segurança, Couto fez uma análise extremamente interessante sobre o uso do medo e o comportamento social complacente diante de abusos, transcrita abaixo.

Aos que preferem assistir, aqui o link http://www.youtube.com/watch?v=jACccaTogxE

Transcrição da intervenção de Mia Couto na Conferência do Estoril 2011

Bom,

Nada mais inseguro do que um escritor numa conferência sobre segurança, um escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e na anterior edição… preciso de um abrigo, preciso de um refúgio… é um texto que vou ler… o presidente tinha dito que eu devia falar espontaneamente... não sou capaz em sete minutos. Eu escrevi este texto que vou ler e chama-se Comemorar o Medo.

 Comemorar o Medo

O medo foi um dos meus primeiros mestres.

Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos actuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.

Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinaram a recear os desconhecidos. Na realidade a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e conhecidos.

Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos.

Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.

O medo foi afinal o mestre que mais me fez desaprender.

Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional. Os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência e um ateu barbudo com um nome alemão.

Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis e Carl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história e, a mais grave dessa longa herança de intervenção externa, é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo a oriente e a ocidente e, por que se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação, precisamos de intervenção com legitimidade divina.

O que era ideologia passou a ser crença. O que era política tornou-se religião. O que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas.

A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem:

Para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.

Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível.

Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo estas:

ü  Por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento?

ü  Por que motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilião e meio de dólares em armamento militar?

ü  Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exactamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi?

ü  Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra, essa arma chama-se fome!

Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome.

O custo para superar a fome mundial seria uma fracção muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo uma em cada três mulheres, foi ou será, vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo facto simples de serem mulheres.

A nossa indignação porém é bem menor que o medo!

Sem darmos conta fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha, a Grande Muralha, que foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra, são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos mas não há hoje no mundo um muro que separe os que têm medo dos que não têm medo.

Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente.

Citarei Eduardo Galiano acerca disto, que é o medo global, e dizer:

Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras e, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.

Muito obrigado.

sábado, 12 de outubro de 2013

Assim pediu o arquivamento: "Bandido que dá tiro para matar tem que tomar tiro para morrer"

Expressar o sentimento de frustração, indignação e de revolta diante da ineficiência do Poder Público na resolução dos problemas que afligem cotidianamente a cada um de nós é comportamento que pode e deve ser encarado com naturalidade.
O cidadão, que espera do Estado, na prestação dos serviços básicos (como saúde, educação e segurança), a mesma eficiência e qualidade com que ele arrecada os tributos, há de se sentir, e com razão, injuriado quando se vê vítima desse descompasso. Mas, ainda que num Estado Democrático e Social de Direito, é preciso observar limites de razoabilidade.
A investidura em cargo público, por óbvio, não elimina o cidadão (seus sentimentos, suas aflições e suas convicções) por trás da liturgia da atividade para a qual é pago pelo erário, mas impõe limites intransponíveis, sobretudo no manuseio de normas jurídicas democráticas.
É preciso, portanto, ter serenidade e discernimento suficiente para saber lidar com a profusão de sentimentos que influenciam diretamente a atividade jurídica, especialmente na seara penal. Saber separar o joio do trigo exige um esforço hercúleo, para o qual, infelizmente, nem todo concurso público consegue aferir.
Dessa forma, é de se compreender (e relevar, às vezes!) o desabafo revoltado (descomprometido com os preceitos constitucionais) de um cidadão, de seus amigos e familiares, cuja garantia da segurança, que deveria ter sido assegurada pelo Estado, foi covardemente violada por pura incompetência gerencial. Mas é de se repudiar esse mesmo tipo de comportamento levado a cabo por uma autoridade pública cuja principal tarefa é justamente o zelo pelas garantias constitucionais.
Se começarmos a criar exceções na proteção de nossas garantias, em nome de uma maior eficiência, por exemplo, no “combate ao crime”, o que nos reservará o futuro com um poder punitivo cada vez mais expansivo?
O caso do promotor, conforme se verá acima, faz-nos o alerta. O discurso é fácil e prontamente aplaudido nas mais variadas rodas de incautos, mas extrapola (sem dúvida!) os princípios democráticos com os quais ele mesmo, por foça do cargo, deveria estar comprometido.
Assim, remete-nos aos tempos da barbárie, onde não se percebe, como já nos alertava Bobbio e tantos outro renomados autores, que do discurso da violência não pode nascer uma sociedade da paz.  

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Assim rejeitou queixa-crime sobre injúria: “Futebol é jogo viril, varonil, não homossexual”

Temos mostrado neste espaço, uma série de decisões judiciais que desconstroem o mito da neutralidade do juiz. A ideia esposada na monografia de Thiago Alessandro Fattori, publicada na revista brasileira de ciências criminais, de julho deste ano, amparada pela obra de Antônio R. Damásio, revela a inexistência de uma racionalidade objetiva, despida que qualquer influência interna.

Abaixo, podemos ver o quanto as convicções pessoais do magistrado impregnaram sua decisão.

Processo nº 936-07

Conclusão

Em 5 de julho de 2007. faço estes autos conclusos ao Dr. Manoel Maximiano Junqueira Filho, MM. Juiz de Direito Titular da Nona Vara Criminal da Comarca da Capital.

Eu, Ana Maria R. Goto, Escrevente, digitei e subscrevi.

A presente Queixa-Crime não reúne condições de prosseguir.

Vou evitar um exame perfunctório, mesmo porque, é vedado constitucionalmente, na esteira do artigo 93, inciso IX, da Carta Magna.

1. Não vejo nenhum ataque do querelado ao querelante.

2. Em nenhum momento o querelado apontou o querelante como homossexual.

3. Se o tivesse rotulado de homossexual, o querelante poderia optar pelos seguintes caminhos:

3. A – Não sendo homossexual, a imputação não o atingiria e bastaria que, também ele, o querelante, comparecesse no mesmo programa televisivo e declarasse ser heterossexual e ponto final;

3. B – se fosse homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados...

Quem é, ou foi BOLEIRO, sabe muito bem que estas infelizes colocações exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o ofendido, num TÈTE-À TÈTE”.

Trazer o episódio à Justiça, outra coisa não é senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante, se comparado à grandeza do futebol brasileiro.

Em Juízo haveria audiência de retratação, exceção da verdade, interrogatório, prova oral, para se saber se o querelado disse mesmo... e para se aquilatar se o querelante é, ou não...

4. O querelante trouxe, em arrimo documental, suposta manifestação do “GRUPO GAY”, da Bahia (folha 10) em conforto à posição do jogador. E também suposto pronunciamento publicado na Folha de São Paulo, de autoria do colunista Juca Kfouri (folha 7), batendo-se pela abertura, nas canchas, de atletas com opção sexual não de todo aceita.

5. Já que foi colocado, como lastro, este Juízo responde: futebol é jogo viril, varonil, não homossexual. Há hinos que consagram esta condição: “OLHOS ONDE SURGE O AMANHÃ, RADIOSO DE LUZ, VARONIL, SEGUE SUA SENDA DE VITÓRIAS...”.

6. Esta situação, incomum, do mundo moderno, precisa ser rebatida...

7. Quem se recorda da “COPA DO MUNDO DE 1970”, quem viu o escrete de ouro jogando (FÉLIX, CARLOS ALBERTO, BRITO, EVERALDO E PIAZA; CLODOALDO E GÉRSON; JAIRZINHO, PELÉ, TOSTÃO E RIVELINO), jamais conceberia um ídolo seu homossexual.

8. Quem presenciou grandes orquestras futebolísticas formadas: SEJAS, CLODOALDO, PELÉ E EDU, no Peixe: MANGA, FIGUEROA, FALCÃO E CAÇAPAVA, no Colorado; CARLOS, OSCAR, VANDERLEI, MARCO AURELIO E DICÁ, na Macaca, dentre inúmeros craques, não poderia sonhar em vivenciar um homossexual jogando futebol.

9. Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas, forme o seu time e inicie uma Federação. Agende jogos com quem prefira pelejar contra si.

10. O que não se pode entender é que a Associação de Gays da Bahia e alguns colunistas (se é que realmente se pronunciaram neste sentido) teimem em projetar para os gramados, atletas homossexuais.

11. Ora, bolas, se a moda pega, logo teremos o “SISTEMA DE COTAS”, forçando o acesso de tantos por agremiação...

12. E não se diga que essa abertura será de idêntica proporção ao que se deu quando os negros passaram a compor as equipes. Nada menos exato. Também o negro, se homossexual, deve evitar fazer parte de equipes futebolísticas de héteros.

13. Mas o negro desvelou-se (e em várias atividades) importantíssimo para a história do Brasil: o mais completo atacante, jamais visto, chama-se EDSON ARANTES DO NASCIMENTO e é negro.

14. O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal...

15. Para não se falar no desconforto do torcedor, que pretende ir ao estádio , por vezes com seu filho, avistar o time do coração se projetando na competição, ao invés de perder-se em análises do comportamento deste, ou daquele atleta, com evidente problema de personalidade, ou existencial; desconforto também dos colegas de equipe, do treinador, da comissão técnica e da direção do clube.

16. Precisa, a propósito, estrofe popular, que consagra:

“CADA UM NA SUA ÁREA,

CADA MACACO EM SEU GALHO,

CADA GALO EM SEU TERREIRO,

CADA REI EM SEU BARALHO”.

17. É assim que eu penso... e porque penso assim, na condição de Magistrado, digo!

18. Rejeito a presente Queixa-Crime. Arquivem-se os autos. Na hipótese de eventual recurso em sentido estrito, dê-se ciência ao Ministério Público e intime-se o querelado, para contra-razões.

São Paulo, 5 de julho de 2007

 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Nossas três penas de morte executadas pelo Estado

Em nosso território é inegável a importância que o ordenamento, especialmente o constitucional, dá à vida humana. Como se não bastasse isso, o Brasil ainda é parte de diversos diplomas internacionais com os quais há o compromisso de preservá-la nas condições mais dignas possíveis.

Há, portanto, todo um sistema jurídico mundialmente fomentado que nos permite concluir ser a vida humana, no rol dos direitos humanos, o bem mais caro no âmbito de um Estado Democrático de Direito, cujo reconhecimento é amplo, mas a proteção tem se mostrado deficiente, como bem destacado e desenvolvido por Bobbio em seu “A era dos direitos”.

Assim, em razão das tensões sociais não dissolvidas pela ineficiência estatal, é possível encontrarmos tentativas por parte do legislador populista de implantação de políticas de mitigação que se voltam contra nossos direitos e garantias mais básicas, sempre pautadas, é claro, por boas intenções (como aquelas que povoam o inferno!).

Passeando pela Constituição Federal, núcleo de validade de nosso sistema jurídico, vamos encontrar no art. 5º, inciso XLVII, alínea “a”, de nossa Constituição Federal, uma autorização, excepcional, à pena de morte em casos de guerra declarada nos termos de seu art. 84, XIX.

Assim, esta seria, não fosse o desejo desenfreado do legislador populista (sedento pela simpatia e pelo voto dos incautos) de atender as cobranças renitentes da população por mais Direito Penal, a única situação de autorização direcionada diretamente ao Estado para a supressão de vida humana como forma de pena. É essa, pelo menos, a única legitimada.

Mesmo diante dessa excepcionalidade expressa da pena de morte, é preciso reconhecer que subrepticiamente, como já chamou a atenção parte da doutrina penal, especialmente o professor Luiz Flávio Gomes, a Lei 9.614/98 instituiu nova modalidade de pena de morte (e o que é por!), em caráter administrativo e sem o devido processo legal, cuja execução fica a cargo da autorização do Presidente da República.

Esta lei, que alterou o art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86), eufemisticamente previu, portanto, “medidas de destruição” para aeronaves classificadas como hostis, que tenham infringido o procedimento padrão delineado no já referido artigo.

Tal dispositivo de extermínio, ressalte-se, surgiu em virtude das frequentes investidas de traficantes para transportar drogas pelo espaço aéreo brasileiro, especialmente por sobre a Amazônia, próximo à fronteira com a Colômbia, um dos maiores produtores e exportadores nessa seara.

Vê-se patente, com isso, a inconstitucionalidade na ampliação da supressão da vida humana por (pasmem!) legislação infraconstitucional, o que se reveste de completa falta de razoabilidade diante de um bem garantido constitucionalmente.

Como bem destacado por Luciano Feldens e Lênio Luiz Streck em “Crime e Constituição”, “o estabelecimento de crimes e penas não pode ser um ato absolutamente discricionário, voluntarista ou produto de cabalas”, ou seja, é preciso ter por fundamento a própria constituição que, nesse caso, não deixou espaço para a ampliação da pena de morte.

Um pouco menos controversa neste aspecto, é a terceira modalidade de pena de morte, mas desta feita, não mais contra pessoas físicas. O art. 24 da Lei 9.605/98, a lei dos crimes ambientais, também prevê uma modalidade de pena de morte, só que para pessoas jurídicas.

É esse, por exemplo, o entendimento dos professores Silvio Maciel e Luiz Flávio Gomes, em “Crimes ambientais”, onde destacam que pelo dispositivo já mencionado, será decretada a liquidação forçada da empresa e seu patrimônio, considerado instrumento do crime, como tal, perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional, ou seja, resta decretada a morte da pessoa jurídica.  

Nesse caso, indicam os autores, haveria sintonia com o Pacto de São José da Costa Rica em seu art. 4, cuja interpretação nos levaria a concluir que a pena de morte só teria o rigor da proibição para pessoas físicas.
Por derradeiro, o fato é que vivemos momentos difíceis em matéria de consolidação das conquistas históricas em direitos humanos. A cada crime bárbaro repercutido na mídia, as ondas de mitigação (de retrocesso, diga-se) abalam as estruturas de nosso Estado Democrático, sempre em nome da “segurança”, do “bem comum”, da “sociedade”, bem assim como fizeram nazistas, fascistas e comunistas.

Os discursos são sedutores, pois trazem soluções aparentemente definitivas (como a pena de morte), e, na busca desesperada por soluções, somos tentados a abraçá-los, assim como um dia o fizeram os alemães, os italianos e os russos. O resultado todos já sabemos!