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Cultura
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
sábado, 15 de fevereiro de 2014
Estariam mesmo a violência e a criminalidade em ascendência?
Inúmeras são as formas de interpretar a realidade. Podemos
fazê-la por meio do senso comum, das artes, da teologia, da filosofia e da
ciência. Pelo menos essas são as formas que poderíamos destacar no contexto
deste nosso espaço.
Numa democracia, portanto, somos livres para aderirmos
àquela que melhor se adeque às nossas necessidades, desde que haja, obviamente,
o respeito às opções alheias. Mas, difícil mesmo, é aderir às formas que
deponham contra as interpretações mais difundidas na sociedade.
Não é fácil, é bem verdade, “remar contra a maré”, defender
pontos de vista que não seguem, por exemplo, o senso comum, as artes e,
sobretudo, a teologia, ramos que, em nosso entender, estão menos comprometidos
com a racionalidade do que a filosofia e a ciência.
O método cartesiano de racionalização, hoje tão difundido,
apesar de críticas pontuais que vem sofrendo ao longo dos séculos, veja-se, a
propósito, Antonio R. Damásio, apresenta-se como um dos mais confiáveis e
seguros, especialmente quando faz parte de nossa rotina o compromisso com a
leitura, com o estudo dedicado dos mais variados temas.
Diante disto, temos sido expostos com frequência pela grande
mídia à máxima de que vivenciamos as escaladas da violência e da criminalidade.
A cada dia somos apresentados a uma série de novos personagens, rotulados com
títulos nada honoríficos nos meios de comunicação de massa.
E com que intenção se faz isso? Para discutir o assunto?
Talvez sim, talvez não... Mas o que é certo mesmo é que as empresas de mídia
vivem de investimentos, precisam pagar os seus profissionais, manter a sua
estrutura, e, para isso, precisam de acessos, de audiência, de jornais,
revistas e espaços publicitários vendidos, o que se consegue com mais eficiência
fazendo ressoar aquilo que chama a atenção das massas, seu público. O que
melhor do que o crime para isso? Assim, quanto mais perverso o fato se
apresentar, mais atrativo ele será. Nesse contexto, atuar no limite da ética profissional (alguns até a ultrapassam) tem sido uma constante.
Como consequência desse comportamento, além de um círculo
vicioso difícil de ser rompido, temos a sensação de que a regra de eventos na
sociedade parece ser o crime, quando na verdade não é.
Fosse essa a regra, muito provavelmente eu não estivesse
neste momento me permitindo compartilhar minhas ideias neste espaço e fazendo
planos de, mais tarde, “dar um rolezinho”. O crime, portanto, é a exceção, o
que nos permite fazer planos de interação social com certa naturalidade, apesar
dos riscos inerentes a essas atividades em toda e qualquer sociedade.
Há alguns dias estive debruçado sobre a obra de Steven
Pinker, “Os anjos bons de nossa natureza – por que a violência diminuiu”, um
neurocientista canadense que dedicou parte de sua vida ao estudo da violência e
da criminalidade no contexto histórico. Um livro que, como se percebe
prontamente, confronta o senso comum e, por consequência, o que constantemente
é retratado na mídia, ou seja, sustenta uma ideia que dificilmente será aceita
pelas massas.
O bombardeio de informações diárias sobre eventos criminosos
nos faz acreditar no contrário, eclipsando a tese de Pinker.
Como ele mesmo explica no prefácio, nossas mentes tendem a
estimar as probabilidades com base na facilidade com que se consegue recordar
exemplos, “é mais provável que cenas de carnificina, e não imagens de pessoas
morrendo de velhice, sejam transmitidas para as nossas casas e fiquem gravadas
em nossa memória. Por menor que possa ser a porcentagem de mortes violentas, em
números absolutos elas sempre serão bastantes para encher o noticiário à noite,
e com isso as impressões das pessoas sobre a violência serão desvinculadas das
verdadeiras proporções”.
Pinker, corajosamente, apresenta-nos uma perspectiva
diferente e, flagrantemente, coerente com os números registrados pela história
da violência e da criminalidade no mundo. Sob esse ângulo (global), há um
declínio, e isso é evidente!
Estamos menos propensos, por exemplo, a uma guerra mundial,
a eventos que nos levariam a massacres como os observados nas grandes guerras
de nossa história. O desenvolvimento de nossos anjos bons (empatia, senso
moral, autocontrole e a razão), além do interesse econômico, foi crucial para o
período de longa paz em que vivemos.
Ainda que mudemos a perspectiva, e voltemos nossa atenção à
violência urbana, o que nos remete ao contexto local, a tese não se mostra
imprestável. Assim, não se recomenda interpretar a realidade com base no número
de vezes que a violência e a criminalidade são veiculadas na imprensa. É
preciso um pouco mais de cuidado nessa análise, que não pretendo fazer com
profundidade nesse momento, pois minha pretensão é, por enquanto, provocar a
discussão.
Além dos números midiatizados, aqueles apresentados pelos
órgãos oficiais também precisam passar por um processo de depuração. A
divulgação, corroborada muitas vezes por ambos, desses números não retratam a
realidade. Ora porque muitas das atividades consideradas como criminosas não
chegam a integrar as estatísticas oficiais (as chamadas cifras negras), ora
porque os números, na imensa maioria dos casos, não levam em conta o resultado
das investigações.
Sobre este último aspecto apresentado, Louk Hulsman, em seu
clássico “Penas perdidas – o sistema penal em questão”, é esclarecedor quando
afirma que “as estatísticas policiais, em nenhum caso, representam a medida da
criminalidade de um país. Convém deter-se um pouco neste ponto. Lembremo-nos,
inicialmente, que os números fornecidos pela polícia não são correspondentes
aos `crimes´ ou aos `delitos´, que assim se tornam somente após o julgamento
proferido pela justiça penal, correspondendo sim a quantidade de inquéritos
encaminhados ao Parquet, o que é bem diferente. Este volume é muito maior, pois
inclui os inquéritos que serão arquivados pelo Ministério Público e o número de
processados que serão inocentados”.
Hulsman, no entanto, arremata sustentando que “as
estatísticas policiais contam os casos de que a polícia se ocupa, não as
pessoas indicadas ou os fatos praticados, instaurando-se um inquérito para cada
´caso`, de modo que um mesmo fato punível pode gerar um grande número de
inquéritos...”.
Contudo, é imperioso que reflitamos a respeito de tudo
quanto foi exposto. Não temos, em absoluto, a intenção de negar que a sensação
de insegurança urbana é crescente, isso, como sabemos, é senso comum, mas estariam
a violência e a criminalidade urbana realmente em linha ascendente? Ou teríamos
aprimorado os mecanismos de percepção disso ao longo dos tempos?
Uma imprensa mais necessitada e interessada sobre o assunto,
uma sociedade mais curiosa e crítica, um Estado mais honesto com os números, enfim,
é preciso estudar e interpretar desapaixonadamente os números e depurá-los antes
de uma conclusão segura sobre o assunto. É exatamente o que pretendo provocar
com o este ensaio!
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014
Sistema carcerário é fábrica de degeneração humana: como mudar isso?
Em meados de janeiro de 2014 estava eu debruçado sobre a interessante
obra de Alberto Carlos Almeida, “A cabeça do brasileiro”, uma provocante
análise sobre a opinião dos brasileiros em diversas áreas de nossa sociedade – ética,
sexualidade, economia, família, política, entre outros assuntos, constituíam a plêiade
complexa de materiais da pesquisa realizada pelo autor com o auxílio do
americano Clifford Young – quando recebi uma ligação do presidente da Ordem dos
Advogados do Brasil, seccional de Alagoas, Thiago Bomfim.
Era uma noite aprazível, como é de costume, em nossa
Palmeira dos Índios, típica cidade interiorana do nordeste, com dias de calor
intenso e noites agradavelmente frescas, quando, ao celular, chegou-me o convite.
Diante das reincidentes discussões sobre o sistema carcerário brasileiro e das
incontáveis violações aos direitos humanos, sobretudo, por quem deveria fomentá-los
e protegê-los, a direção da Ordem dos Advogados do Brasil resolveu constituir
uma comissão permanente de acompanhamento do sistema.
Com um representante de cada estado da federação, a tarefa delegada
seria a de acompanhar o funcionamento do sistema carcerário como um todo, desde
a aplicação dos recursos públicos ao tratamento oferecido aos ingressos no
cárcere. A ligação telefônica, portanto, serviu para me convocar para essa espinhosa
tarefa, o que de plano aceitei. Reunidos dados preliminares fornecidos pelos
sítios eletrônicos da Superintendência de Administração Penitenciária de
Alagoas e do Ministério da Justiça, além da experiência adquirida tanto pela
militância prática quanto pelo magistério na área penal, dirigimo-nos até Brasília,
com o propósito de tomarmos posse e participarmos da primeira reunião de
trabalho da comissão.
A abertura dos trabalhos, no dia 04 de fevereiro de 2014,
contou com a palestra de um de nossos maiores penalistas, o professor Miguel
Reale Jr., que naquela oportunidade conclamou a todos os presentes a pensarmos
em soluções que não permitissem que o sistema carcerário servisse apenas, como
hoje serve, como medida exclusivamente aflitiva. Reale foi enfático ao afirmar
que “todas as discussões teóricas que podem ser feitas de que a pena visa à intimidação
ou a prevenção geral positiva, a reforçar o valor na sociedade ou a recuperação,
cede diante do primeiro sentimento daquele que é o grande personagem do Direito
Penal que é o réu, que é o condenado. É perguntar ao condenado como é que ele
sente a pena que lhe é imposta: castigo. Como é que a sociedade percebe a aplicação
da pena: castigo”.
Ao criticar o tratamento que conferem os estados ao apenado,
Reale arremata reconhecendo que a pena é sim um castigo, “mas que ela não pode
ser de modo algum apenas isso”. “A pena tem vários significados, dentre eles, o
de viabilização de que o condenado ao sair tenha a possibilidade de superar os conflitos
que são naturais da vida social, ainda mais numa vida social de conflitos e de
competição como é a vida atual, capacidade de superar esses conflitos sem
recorrer ao delito, como a via mais fácil de satisfação de desejos. É, portanto,
uma grande tarefa”, disse o jurista.
Assim como são tratados os condenados definitivamente, também
o são os presos provisórios, que muitas vezes se misturam, ao arrepio da Lei de
Execuções Penais e da Constituição Federal. Segundo os dados atuais, quase
metade da população carcerária brasileira é constituída de presos nesta
condição. Dessa forma, de que modo obrigar os estados a cumprirem todo um
emaranhado de normas humanitárias que já existem e estão positivadas
internamente, mas que na imensa maioria dos casos não são efetivadas? Como
dotar os órgãos de controle e fiscalização de instrumentos capazes de efetivar essas
normas? Como fazer o judiciário,
especialmente juízes de primeiro grau, perceber que, num Estado verdadeiramente
democrático, a liberdade deve ser a regra no desenrolar de um processo penal? Como
fazê-los perceber que “ordem pública” não é requisito substancialmente válido
para decretação de prisões provisórias, posto que a expressão notadamente tem
viés autoritário (remonta os ideais fascistas!) e carece até mesmo de determinação
semântica? Como fazer tudo isso?! É esse
o desafio que se apresenta aos membros da comissão.
Ir além das propostas de mais presídios, mutirões e revisões
processuais apregoados por autoridades constituídas (por má-fé ou ingenuidade) como
redentores de toda essa problemática, é nossa obrigação.
Os dados disponibilizados à nossa comissão pelo Departamento
Penitenciário Nacional dão conta de que há a necessidade de criação de mais de
duzentas mil vagas no sistema, o que deverá custar mais de cinco bilhões de
reais, isso contando com uma estagnação da população carcerária, o que se mostra
impraticável atualmente. Ver autoridades falarem com naturalidade sobre mutirões
e revisão processual é a prova inequívoca de que o sistema penal é, de regra,
falho, ineficiente e antidemocrático.
Avançar nas discussões que dizem respeito ao sistema penal,
ao seu funcionamento e ao modo de seleção de casos conflituosos. É o mínimo que
se espera de um colegiado de advogados que norteará os próximos passos de uma
entidade que historicamente têm contribuído para a consolidação dos princípios
democráticos no país.
Não bastasse tudo isso, preocupa-nos ainda o fato de que grande
parte da sociedade leiga tende a legitimar o status quo. Interessa a ela, em grande parte, que os rotulados de desviados
estejam presos, e não como estão no cárcere sendo tratados. Tudo isso fruto de
uma cultura punitivista em franca ascensão e celebrizada por boa parte da mídia,
conforme podemos ver retratada na obra que inicialmente citamos, de Alberto
Carlos Almeida. Para ficarmos em apenas um exemplo, pela pesquisa realizada em
2002, que serviu de base para o livro “A cabeça do brasileiro”, 1/3 da
população considera correto que a polícia bata nos presos para obter confissões
(pág. 135).
A construção desse senso comum punitivista, a propósito, é
permeada de incoerências, como bem ressaltado no livro acima. É comum vermos as
pessoas exaltarem os preceitos cristãos, mas ao mesmo tempo apoiarem a
ideologia do “bandido bom é bandido morto”, até que, o tal bandido, não seja um
parente próximo, claro! Não teria sido Jesus o autor da frase: “amai vossos
inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam...”?!
Não nos exigirá esforço, portanto, perceber, ao folear
alguns livros de história ou estatísticas sobre reincidências, que todos os
tipos de medidas atrozes ou cruéis já foram utilizadas (e, em muitos locais,
ainda são – Veja-se Guatánamo, do “democrático” Estados Unidos!) pelos homens
nos mais variados pontos do globo. Se em alguns desses lugares isso tivesse funcionado
como medida eficaz no controle da criminalidade, desconfio que saberíamos.
Talvez tenha chegado a hora de levarmos mais a sério ideais
outrora denominados de utópicos, como aqueles acolhidos pelo abolicionismo de Louk
Hulsman (Por que não?!). Invertermos esse processo ardiloso de carcerização atualmente
em moda é uma necessidade, sob pena de passarmos a conviver com maior frequência
com casos como o de Pedrinhas, no Maranhão, tendo repercutido
internacionalmente.
Ainda que sejamos partidários de uma utopia, de que nos
serviria ela senão para nos manter caminhando rumo a uma sociedade ideal, como bem
nos lembra Eduardo Galeano, que, provocado, certa vez disse: “A utopia está lá
no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez
passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de
caminhar”.
De nossa parte, na comissão de acompanhamento do sistema
carcerário brasileiro, instituída pela Ordem dos Advogados do Brasil, como
representante de Alagoas, com a colaboração dos colegas da área, não se espere outra coisa senão um esforço redobrado
no sentido de um dia vivermos a utopia do pleno respeito à dignidade humana,
fundamento de qualquer democracia, dentro ou fora do cárcere. Ao invés de um
choque de prisionização, com o qual estamos acostumados desde o Brasil colônia,
cujos resultados são muito bem conhecidos, é chegada a hora de um choque de
liberdade e respeito aos direitos humanos, estejam esses humanos rotulados ou não
pelo sistema penal.
* a comissão volta a
se reunir no próximo dia 14 de março em Brasília para discutir com
mais profundidade os problemas e apontar soluções. Por aqui, além de receber sugestões, vou atualizando as informações sobre os debates na comissão.
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