Cultura

sábado, 30 de março de 2013

O Direito Fundamental de ser mau



A natureza humana é ponto bastante discutido ao longo da história. Filósofos como Maquiavel, Hobbes, Rousseau, entre tantos outros, dedicaram suas vidas em profundos estudos e obras onde analisaram as características comportamentais do ser humano. 

Tornou-se corrente, especialmente por simplificar as complexas percepções humanas, a utilização de fórmulas maniqueístas, classificando o homem, diante de determinadas situações, como bom ou mau.

As consequências dessa valoração de visão dualista variam, dependendo da seara de controle social envolvida. Na religião, por exemplo, ser mau, pode constituir um pecado. Para nós, por questão de familiaridade, interessam-nos as consequências penais.

Estabelecido nosso pressuposto, ou seja, uma construção teórica do ponto de vista do Direito Penal, importante notar a existência de certo senso comum entre os juristas, de que os direitos fundamentais, pressupostos básicos de um Estado Democrático de Direito, grosso modo, servem como limites ao exercício da liberdade geral de todos os entes, públicos ou particulares. Contudo, é garantido ir, vir, permanecer, pensar, crer, expressar, enfim, desde que respeitemos a esfera dos direitos alheios.

Nessa esteira, a atuação válida do Direito Penal sobre alguém só é possível por conta de uma exteriorização desmedida dessa liberdade, em quaisquer das suas mais variadas facetas. O ideal de um ser humano livre e responsável no exercício dessa liberdade, imbuído na construção de uma sociedade justa e solidária, é perseguido pelos que operam e ajudam a construir o Direito.

Com base no que até aqui dissemos, sob a perspectiva do Direito, já se pode concluir: o que nos impede de sermos maus, além de normas éticas e morais nem sempre positivadas? A resposta só pode ser uma: Nada! Contanto que, ao exteriorizar o que pensamos não realizemos conduta lesiva a relevantes bens juridicamente protegidos que estejam na esfera de disposição alheia, com a necessária e anterior prescrição legal, absolutamente nada pode nos acontecer do ponto de vista penal.

É do italiano Luigi Ferrajoli, um dos mais exaltados penalistas da atualidade, a construção de sóbria e realista tese sobre uma espécie de "direito de ser mau", que nos permite concluir que nenhum Estado pode obrigar ninguém a ser bom.

Faz parte de um sistema democrático garantista o sujeito ser aquilo que lhe interessa ser, bom ou mau, com as ressalvas já assinaladas. Nossa Lei de Execuções Penais, por exemplo, é antidemocrática por sua finalidade ressocializadora. No garantismo de Ferrajoli, a pena deve ser meramente retributiva, sem ilusórias intenções, sobretudo no falido sistema carcerário brasileiro, de fazer o apenado melhorar, tornar-se bom aos olhos da sociedade.

Há um direito fundamental, por via de consequência constitucional, do cidadão que vive em uma democracia de escolher o politicamente incorreto, o moralmente reprovável, o eticamente desaconselhável, o chamado lado negro da força, sem que isso implique necessariamente em atuação do Direito Penal.

Desse modo, nosso desafio é conviver com essas diferenças, essas concepções de vida destoantes do pensamento da maioria simples. O desrespeito ao exercício legítimo da liberdade alheia é próprio de regimes totalitários, absolutista, extremistas, que não suportam esse ônus, típico das democracias.

sexta-feira, 29 de março de 2013

A espetacularização da investigação criminal como rentável produto midiático



A organização e realização de espetáculos midiáticos que colocam no centro das atenções algum indivíduo objeto da investigação estatal não é novidade para o mundo, muito embora observemos com maior frequência modernamente no Brasil.

Vivenciamos uma reedição, revestida de aparente constitucionalidade, das famosas arenas romanas, mais comedidas, é claro, mas com sub-reptícia forma de atingir a dignidade humana.

O fato é que, a popularização do processo de investigação criminal transformou-se em rentável produto a diversos setores da mídia, que, muitas vezes, não se contentam em dar o fato, mas constroem suas versões, valoram as provas e proferem o veredito.

Tais métodos apresentam especial preocupação diante de uma população que, em geral, tem preguiça de pensar, de raciocinar, de elaborar suas próprias teses, ou seja, padecemos, volto a frisar, de um modo geral, de crônica falta de senso crítico e investigativo. Sob essa perspectiva, a apresentação de fórmulas prontas, seduz facilmente aos desavisados.

É inegável que a existência de um Estado Democrático de Direito, como previsto em nossa Constituição, pressupõe uma quantidade considerável de liberdades, dentre elas, a de expressão e informação. Assim como também não se pode negar que um processo de investigação criminal nesse mesmo Estado deve ter como regra a publicidade.

Por outro lado, tal Estado Democrático de Direito não se faz com garantias absolutas, inflexíveis, inexoráveis. O dinamismo das relações sociais nos apresenta constantemente colisões entre garantias fundamentais. Essas colisões, como sugere um dos mais influentes juristas alemães da atualidade, Robert Alexy, em sua “Teoria dos Princípios”, devem se resolver por sopesamentos ou ponderações.

Nesses casos, temos as liberdades de expressão e informação, cumulada com a regra da publicidade da investigação, frente à dignidade da pessoa humana e, mais especificamente, a presunção de inocência. O imenso aparato midiático com os fundamentos já citados e o investigado com suas garantias se contrapõem. A prevalência de um sobre o outro está vinculada aos limites do exercício desses direitos fundamentais no caso concreto.

Por certo, a espetacularização, com a construção implícita (quando não explícitas) de teses, na maioria das vezes desfavoráveis ao investigado, com a divulgação de protestos e cobranças sociais juridicamente descomprometidas, além de trechos descontextualizados de gravações ou outras provas desfavoráveis, extrapola e muito, os limites das garantias já expostas, que justificariam o trabalho da imprensa, atingindo, portanto, a dignidade humana e a presunção de inocência.

Um dos mais abalizados processualistas da nova geração, Gustavo Henrique Badaró, em seu “Direito Processual Penal”, publicado pela Elsevier em 2008, quando trata das garantias processuais e o sistema acusatório, é enfático ao afirmar que “o segredo é um mal que desnatura o processo, também é preciso tomar cuidado com a exasperação da publicidade processual. O strepitus fori pode causar danos irreparáveis o acusado e às vítimas. O forte sensacionalismo pode levar a um seriíssimo comprometimento da serenidade do julgador que, em casos extremos, pode levar até mesmo à perda da imparcialidade, por força da sugestionabilidade e, até mesmo, por que não se dizer, de verdadeira coação que a mídia pode exercer sobre o julgador”.

Serenidade deve ser, portanto, o clima da marcha processual. As vítimas, ou seus familiares, geralmente movidos por um justo sentimento de vingança, não podem, nem devem, contaminar as investigações. E é justamente aqui que a exposição midiática desmedida potencializa esses efeitos nocivos às finalidades do processo penal, pois agrega a essas cobranças a pressão de grande parte da sociedade por vezes descomprometida com fundamentos jurídicos.

No processo penal devem prevalecer os argumentos fáticos e jurídicos, cujas valorações não devem perpassar por sentimentos de amor, paixão, ódio ou vingança. O tratamento dos males causados pelo suposto evento criminoso deverá ser realizado por outras áreas das ciências humanas. A psicologia, por exemplo, pode dar sua contribuição com maior efetividade aos traumas verificados na vítima.

A busca desenfreada por audiência em um mercado altamente competitivo e acessível a todos, com ou sem qualificação, tem nos apresentado um deprimente quadro de desrespeito aos mais evidentes direitos fundamentais. Esse tipo de comportamento é prejudicial à própria mídia.

Por fim, relativizar demasiadamente direitos fundamentais em nome da informação é admitir, por outro lado, que àquelas que garantem o exercício de produção e divulgação da informação também podem ser flexibilizadas (ou desrespeitadas) com a mesma intensidade.

quinta-feira, 28 de março de 2013

O expansionismo penal e o esvaziamento de garantias fundamentais



O dinamismo da evolução humana, a imensa quantidade de informações e a amazônica desigualdade na distribuição de produtos no mundo globalizado potencializam a convivência com constantes conflitos sociais que ameaçam e desafiam cotidianamente o Direito Penal e sua principal finalidade: a manutenção de uma sociedade harmônica e pacífica.

Desde as primeiras aglomerações humanas, teóricos se esforçam no sentido de indicar em que medida uma intervenção deve ser feita na busca da sociedade mais justa e igualitária, com uma quantidade suportável de conflitos, com terrenos menos férteis para o crime, pois estes, jamais deixarão de existir por serem inerentes ao fenômeno social. 

Beccaria, em 1764, com seu “Dos Delitos e das Penas”, sagrou-se como um marco na luta por uma intervenção estatal baseada em critérios de necessidade, razoabilidade e proporcionalidade.

As ideias deste pensador combatiam a postura autoritária e desmedida de soberanos de sua época que elegiam os supostos delinquentes como “inimigos do estado”, tratando-os como verdadeiros objetos das mais variadas e cruéis formas de vingança. Sobre esses métodos vis, talvez tenha sido Michel Foucault, em seu “Vigiar e Punir”, o que melhor tenha retratado um dos piores cenários de barbárie promovidos pelo Estado. 

Assiste razão ao mestre italiano Luigi Ferrajoli, em seu “Direito e Razão”, quando diz que “a história das penas é, sem dúvida, mais horrenda que a história dos crimes”.

Desse modo, as ideias de Beccaria encontraram ressonância e incentivaram, em longo prazo, a guinada de um Direito Penal Máximo para um Direito Penal Mínimo. O respeito à dignidade humana chega, finalmente, ao centro das atenções.

O estabelecimento de garantias fundamentais ao ser humano, portanto, contra o poder quase incomensurável do Estado na resolução desses conflitos e na regência da vida social, surge como incontestável evolução. Nem mesmo a busca pela harmonia, pela paz ou pela sensação de segurança geral, justifica a violação dessas irrenunciáveis garantias.

O quadro que vivenciamos hoje, como já tivemos oportunidade de frisar, de uma criminalidade aparentemente incontida, corriqueira e muito próxima de cada um de nós, assusta e desperta o medo de nos tronarmos vítimas. É nesse clima tenso e quase desesperado que temos presenciado as mais engenhosas fórmulas para resolver esse problema, grande parte delas pregando, na essência, o esvaziamento de garantias fundamentais. E o que é pior, encontram respaldo nos órgãos legislativos internos.

Assistimos atualmente, nunca é demais lembrar, na sociedade leiga, uma insistente cobrança pelo expansionismo penal e, por via de consequência, pelo esvaziamento de direitos e garantias fundamentais. Foi assim com a quebra da garantia de não produzir prova contra si mesmo no Código de Trânsito Brasileiro (bafômetro); ou com a coleta compulsória de material genético para investigados (Lei 12.654/12); com o reconhecimento pessoal; da presunção de inocência, com a lei da “Ficha Limpa”; entre tantas outras agasalhadas pelo legislador pátrio.

No inconsciente popular é o Direito Penal, único a interferir legítima e diretamente em nossa liberdade, a panaceia para todos os problemas que a incomodam, esquecendo-se da existência dos mais diversos ramos que compõem o Direito e que podem, com eficácia, promover o bem estar social. 

Iniciamos, dessa forma, o caminho de volta, um processo de perigosa involução. Essa é a preocupação dos mais respeitados estudiosos e críticos desse expansionismo penal, que ganha contornos alarmantes diante de uma Suprema Corte que se deixa embalar, na maioria das vezes, por esses anseios justiceiros desmedidos da sociedade leiga.

O fenômeno do ativismo judicial, que traz a baila um juiz com certa carga de pró-atividade, sobretudo quando liderado pela Suprema Corte brasileira, contamina todo o judiciário e cria um ambiente jurídico de inseguranças e incertezas diante de garantias que, num primeiro momento, pareciam óbices intransponíveis e inegociáveis frente ao poder punitivo do Estado, mas que agora parecem surgir como objetos de conveniência. 
 
Por fim, o recrudescimento da atuação do Direito Penal e a relativização de garantias não há de nos trazer resultados satisfatórios no combate à criminalidade. Fosse assim, os norte-americanos teriam erradicado o crime nos mais de trinta estados que adotam a pena de morte.

De um modo geral, temos boas leis, precisamos de boa estrutura e cada vez mais de profissionais preparados para operá-las! 

A prevalência dessas garantias, conquistadas a custa de muito sangue, suor e lágrimas, é o principal fundamento de qualquer estado democrático de direito e precisamos primar pela por elas. Admitindo relativizações, apenas quando realmente necessárias, e exaustivamente fundamentadas.

O fato é que, somos pródigos em cobrar o esvaziamento ou a relativização de garantias fundamentais quando em nada isso nos afeta, mas preocupamo-nos com elas quando a virulência do poder punitivo do Estado se volta para nós. É preciso lembrar que o Estado nem sempre acerta, nem sempre pune os verdadeiramente culpados e, o que é pior, muitas vezes, sob a justificativa de dar célere satisfação popular, pune inocentes.

domingo, 24 de março de 2013

Antes de mudarmos as leis, precisamos mudar a nós mesmos

Em uma sociedade cuja criminalidade atinge níveis alarmantes em todo território nacional, o endurecimento e uma maior abrangência das leis penais são as primeiras providências cobradas pela sociedade leiga aos seus representantes. Desse modo, diante da busca desesperada por resposta estatal, o Direito Penal, para essas pessoas, surge como o grande vilão, responsável direto pelos desagradáveis índices de criminalidade.

Esse tipo de movimentação, que incentiva a ojeriza ao Direito Penal e cobra seu expansionismo como a panaceia dessa escalada, parece esquecer que nenhuma lei é suficientemente boa e eficiente quando o aparato estatal responsável por sua aplicação é carente de agentes e de estrutura.

Antes de cobrarmos uma modificação drástica de nosso ordenamento como forma de combater a criminalidade, é preciso direcionarmos essa mesma energia aos estados e ao Governo Federal para que, em sintonia, compartilhem estrutura e informações capazes de aplicar com eficácia os milhares de dispositivos penais e processuais penais já existentes.

Segurança Pública alguma é suficientemente eficaz sem a participação popular, ainda que dotada de todos os recursos de investigação.

Como é impossível o Estado ocupar todos os lugares, a população é sempre a principal testemunha dos crimes. É ela que conhece a vítima ou o delinquente, seu comportamento, suas amizades e seus inimigos.

Assim, sem colaboração, especialmente através de serviços como “disque denúncia”, a atuação estatal tende a ser lenta e imprecisa.

Infelizmente, nossa cultura ainda está repleta de comportamentos que a longo e médio prazo acabam contribuindo, direta ou indiretamente, para a escalada da violência.

O distanciamento dos valores da família; a valorização exagerada aos bens materiais; e a apatia perante os órgãos públicos, quando o problema não lhes "pertence" são alguns dos ingredientes que podemos destacar nesse panorama.

Desta forma, antes de cobrarmos mudança da legislação, cuja produção surge como um reflexo momentâneo do sentimento humano coletivo, é importante mudarmos os rumos do comportamento que muitos de nós temos adotado na modernidade.

Costuma-se defender os rigores da lei aos que delinquem, o que em determinadas situações pode parecer justo, mas não raras vezes nos deparamos com tais “defensores” rogando o “jeitinho” quando se encontram na mesma situação. Como nos ensina Ferrajoli, portanto, sigamos as regras, estejamos envolvidos ou não, com o problema que atraiu o Direito Penal.

O combate a criminalidade só surtirá efeitos duradouros, por mais leis que tenhamos, quando resolvermos investir na raiz do problema. Com a exaltação de valores que incentivam o respeito e o amor ao próximo, bem como com pesados investimentos em educação (escola em tempo integral pode ser uma alternativa) teremos, assim, uma chance de transformar essa triste realidade em um mundo melhor para as próximas gerações.