Inúmeras são as formas de interpretar a realidade. Podemos
fazê-la por meio do senso comum, das artes, da teologia, da filosofia e da
ciência. Pelo menos essas são as formas que poderíamos destacar no contexto
deste nosso espaço.
Numa democracia, portanto, somos livres para aderirmos
àquela que melhor se adeque às nossas necessidades, desde que haja, obviamente,
o respeito às opções alheias. Mas, difícil mesmo, é aderir às formas que
deponham contra as interpretações mais difundidas na sociedade.
Não é fácil, é bem verdade, “remar contra a maré”, defender
pontos de vista que não seguem, por exemplo, o senso comum, as artes e,
sobretudo, a teologia, ramos que, em nosso entender, estão menos comprometidos
com a racionalidade do que a filosofia e a ciência.
O método cartesiano de racionalização, hoje tão difundido,
apesar de críticas pontuais que vem sofrendo ao longo dos séculos, veja-se, a
propósito, Antonio R. Damásio, apresenta-se como um dos mais confiáveis e
seguros, especialmente quando faz parte de nossa rotina o compromisso com a
leitura, com o estudo dedicado dos mais variados temas.
Diante disto, temos sido expostos com frequência pela grande
mídia à máxima de que vivenciamos as escaladas da violência e da criminalidade.
A cada dia somos apresentados a uma série de novos personagens, rotulados com
títulos nada honoríficos nos meios de comunicação de massa.
E com que intenção se faz isso? Para discutir o assunto?
Talvez sim, talvez não... Mas o que é certo mesmo é que as empresas de mídia
vivem de investimentos, precisam pagar os seus profissionais, manter a sua
estrutura, e, para isso, precisam de acessos, de audiência, de jornais,
revistas e espaços publicitários vendidos, o que se consegue com mais eficiência
fazendo ressoar aquilo que chama a atenção das massas, seu público. O que
melhor do que o crime para isso? Assim, quanto mais perverso o fato se
apresentar, mais atrativo ele será. Nesse contexto, atuar no limite da ética profissional (alguns até a ultrapassam) tem sido uma constante.
Como consequência desse comportamento, além de um círculo
vicioso difícil de ser rompido, temos a sensação de que a regra de eventos na
sociedade parece ser o crime, quando na verdade não é.
Fosse essa a regra, muito provavelmente eu não estivesse
neste momento me permitindo compartilhar minhas ideias neste espaço e fazendo
planos de, mais tarde, “dar um rolezinho”. O crime, portanto, é a exceção, o
que nos permite fazer planos de interação social com certa naturalidade, apesar
dos riscos inerentes a essas atividades em toda e qualquer sociedade.
Há alguns dias estive debruçado sobre a obra de Steven
Pinker, “Os anjos bons de nossa natureza – por que a violência diminuiu”, um
neurocientista canadense que dedicou parte de sua vida ao estudo da violência e
da criminalidade no contexto histórico. Um livro que, como se percebe
prontamente, confronta o senso comum e, por consequência, o que constantemente
é retratado na mídia, ou seja, sustenta uma ideia que dificilmente será aceita
pelas massas.
O bombardeio de informações diárias sobre eventos criminosos
nos faz acreditar no contrário, eclipsando a tese de Pinker.
Como ele mesmo explica no prefácio, nossas mentes tendem a
estimar as probabilidades com base na facilidade com que se consegue recordar
exemplos, “é mais provável que cenas de carnificina, e não imagens de pessoas
morrendo de velhice, sejam transmitidas para as nossas casas e fiquem gravadas
em nossa memória. Por menor que possa ser a porcentagem de mortes violentas, em
números absolutos elas sempre serão bastantes para encher o noticiário à noite,
e com isso as impressões das pessoas sobre a violência serão desvinculadas das
verdadeiras proporções”.
Pinker, corajosamente, apresenta-nos uma perspectiva
diferente e, flagrantemente, coerente com os números registrados pela história
da violência e da criminalidade no mundo. Sob esse ângulo (global), há um
declínio, e isso é evidente!
Estamos menos propensos, por exemplo, a uma guerra mundial,
a eventos que nos levariam a massacres como os observados nas grandes guerras
de nossa história. O desenvolvimento de nossos anjos bons (empatia, senso
moral, autocontrole e a razão), além do interesse econômico, foi crucial para o
período de longa paz em que vivemos.
Ainda que mudemos a perspectiva, e voltemos nossa atenção à
violência urbana, o que nos remete ao contexto local, a tese não se mostra
imprestável. Assim, não se recomenda interpretar a realidade com base no número
de vezes que a violência e a criminalidade são veiculadas na imprensa. É
preciso um pouco mais de cuidado nessa análise, que não pretendo fazer com
profundidade nesse momento, pois minha pretensão é, por enquanto, provocar a
discussão.
Além dos números midiatizados, aqueles apresentados pelos
órgãos oficiais também precisam passar por um processo de depuração. A
divulgação, corroborada muitas vezes por ambos, desses números não retratam a
realidade. Ora porque muitas das atividades consideradas como criminosas não
chegam a integrar as estatísticas oficiais (as chamadas cifras negras), ora
porque os números, na imensa maioria dos casos, não levam em conta o resultado
das investigações.
Sobre este último aspecto apresentado, Louk Hulsman, em seu
clássico “Penas perdidas – o sistema penal em questão”, é esclarecedor quando
afirma que “as estatísticas policiais, em nenhum caso, representam a medida da
criminalidade de um país. Convém deter-se um pouco neste ponto. Lembremo-nos,
inicialmente, que os números fornecidos pela polícia não são correspondentes
aos `crimes´ ou aos `delitos´, que assim se tornam somente após o julgamento
proferido pela justiça penal, correspondendo sim a quantidade de inquéritos
encaminhados ao Parquet, o que é bem diferente. Este volume é muito maior, pois
inclui os inquéritos que serão arquivados pelo Ministério Público e o número de
processados que serão inocentados”.
Hulsman, no entanto, arremata sustentando que “as
estatísticas policiais contam os casos de que a polícia se ocupa, não as
pessoas indicadas ou os fatos praticados, instaurando-se um inquérito para cada
´caso`, de modo que um mesmo fato punível pode gerar um grande número de
inquéritos...”.
Contudo, é imperioso que reflitamos a respeito de tudo
quanto foi exposto. Não temos, em absoluto, a intenção de negar que a sensação
de insegurança urbana é crescente, isso, como sabemos, é senso comum, mas estariam
a violência e a criminalidade urbana realmente em linha ascendente? Ou teríamos
aprimorado os mecanismos de percepção disso ao longo dos tempos?
Uma imprensa mais necessitada e interessada sobre o assunto,
uma sociedade mais curiosa e crítica, um Estado mais honesto com os números, enfim,
é preciso estudar e interpretar desapaixonadamente os números e depurá-los antes
de uma conclusão segura sobre o assunto. É exatamente o que pretendo provocar
com o este ensaio!
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