Temos, no papel, um arcabouço
de normas que justificariam um Estado Democrático e Social de Direito, mas que
na prática dos órgãos do sistema penal, como bem sabemos, acabam sendo
sufocadas pelo argumento da utilidade, da eficiência e da necessidade. A ideia organicista
e funcionalista de que tudo se justifica (ou se legitima) em nome do são
sentimento do povo brasileiro é de arrancar rasgados elogios de “democratas” da
estirpe de Hitler.
O fato é que, nessa tarefa de gestor de expectativas, acossado pela avalanche de cobranças, o Estado tem recorrido a fórmulas velhas, peculiares em regimes autoritários, transformando o “Estado de Direito” em “Estado de Polícia”, como se, em outros tempos, isso já não tivesse sido testado. O resultado, todos nós conhecemos.
O Estado de Direito seria, nesse sentido, para citar o português Rui Cunha Martins, quando de sua participação no II Congresso Internacional de Ciências Criminais, realizado em homenagem ao mestre Luigi Ferrajoli em outubro deste ano no Rio de Janeiro, uma espécie de defraudador de expectativas com suas fórmulas garantistas. A sociedade cobra celeridade e eficiência que, na maioria das vezes, tem "justificado" a supressão de garantias.
Nesse contexto,
interessa às autoridades que exercem inebriadamente o poder, estimular uma
cultura do medo, esse gigante negro da alma de que tão bem falou Emilio Mira y
López. Assim, quanto mais amedrontada estiver a sociedade, mais complacente com arbitrariedades
ela será, mais abusos ela tolerará diante desse gigante, bastando, obviamente,
que a motivação esteja calcada no “bem comum”.O fato é que, nessa tarefa de gestor de expectativas, acossado pela avalanche de cobranças, o Estado tem recorrido a fórmulas velhas, peculiares em regimes autoritários, transformando o “Estado de Direito” em “Estado de Polícia”, como se, em outros tempos, isso já não tivesse sido testado. O resultado, todos nós conhecemos.
O Estado de Direito seria, nesse sentido, para citar o português Rui Cunha Martins, quando de sua participação no II Congresso Internacional de Ciências Criminais, realizado em homenagem ao mestre Luigi Ferrajoli em outubro deste ano no Rio de Janeiro, uma espécie de defraudador de expectativas com suas fórmulas garantistas. A sociedade cobra celeridade e eficiência que, na maioria das vezes, tem "justificado" a supressão de garantias.
Sobre isso e por fim, prefiro que, por mim, fale o escritor Mia Couto. Em 2011, na conferência de Estoril sobre segurança, Couto fez uma análise extremamente interessante sobre o uso do medo e o comportamento social complacente diante de abusos, transcrita abaixo.
Aos que preferem assistir, aqui o link http://www.youtube.com/watch?v=jACccaTogxE
Transcrição da intervenção de Mia Couto na
Conferência do Estoril 2011
Bom,
Nada mais
inseguro do que um escritor numa conferência sobre segurança, um escritor que
se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e na anterior
edição… preciso de um abrigo, preciso de um refúgio… é um texto que vou ler… o
presidente tinha dito que eu devia falar espontaneamente... não sou capaz em
sete minutos. Eu escrevi este texto que vou ler e chama-se Comemorar o Medo.
O medo foi
um dos meus primeiros mestres.
Antes de
ganhar confiança em celestiais criaturas aprendi a temer monstros, fantasmas e
demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos
actuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.
Nem sempre
os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso
acontecia, por exemplo, quando me ensinaram a recear os desconhecidos. Na
realidade a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada,
não por estranhos, mas por parentes e conhecidos.
Os fantasmas
que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais
seguros em ambiente que reconhecemos.
Os meus
anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido
apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha
cultura, do meu território.
O medo foi
afinal o mestre que mais me fez desaprender.
Quando
deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a
audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que
estradas. Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo
de coisas más do que coisas más propriamente ditas.
No
Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um
invejável casting internacional. Os chineses que comiam crianças, os chamados
terroristas que lutavam pela independência e um ateu barbudo com um nome
alemão.
Esses
fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo.
Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje
governantes respeitáveis e Carl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que
não deixou descendência.
O preço dessa construção de
terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra
o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança
mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais
sanguinários de toda a história e, a mais grave dessa longa herança de
intervenção externa, é a facilidade com que as elites africanas continuam a
culpar os outros pelos seus próprios fracassos.
A guerra
fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando
rapidamente outras geografias do medo a oriente e a ocidente e, por que se
trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação,
precisamos de intervenção com legitimidade divina.
O que era
ideologia passou a ser crença. O que era política tornou-se religião. O que era
religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas é preciso
fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas.
A manutenção
desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas
que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem:
Para
superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais
segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais
precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária
da nossa cidadania.
Todos
sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse
outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor
esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.
Aos
adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as
epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a
natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível.
Vivemos como
cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer
outro estado de sítio as liberdades individuais devem ser contidas, a
privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.
Todas essas
restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo estas:
ü Por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento?
ü Por que motivo se gastou, apenas no ano
passado, um trilião e meio de dólares em armamento militar?
ü Por que razão os que hoje tentam proteger os
civis na Líbia são exactamente os que mais armas venderam ao regime do coronel
Kadafi?
ü Por que motivo se realizam mais seminários
sobre segurança do que sobre justiça?
Se queremos resolver e não
apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e
urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias,
em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra, essa arma chama-se
fome!
Em pleno século XXI, um em cada
seis seres humanos passa fome.
O custo para superar a fome
mundial seria uma fracção muito pequena do que se gasta em armamento. A fome
será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.
Mencionarei ainda uma outra
silenciada violência. Em todo o mundo uma em cada três mulheres, foi ou será,
vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que
sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo facto
simples de serem mulheres.
A nossa indignação porém é bem
menor que o medo!
Sem darmos conta fomos
convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda,
deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões
de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque
estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de
legalidade.
É sintomático que a única
construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha, a Grande
Muralha, que foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A
Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram
mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente
aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na
sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra, são uma
metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há
muros que dividem pobres e ricos mas não há hoje no mundo um muro que separe os
que têm medo dos que não têm medo.
Sob as mesmas nuvens cinzentas
vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente.
Citarei Eduardo Galiano acerca
disto, que é o medo global, e dizer:
Os que trabalham têm medo de
perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho;
quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos
militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta
de guerras e, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo
acabe.
Muito obrigado.