Cultura

domingo, 1 de dezembro de 2013

Segurança pública e o medo: um gigante útil

No estágio atual, diante da ineficiência estatal em dar respostas aos anseios da sociedade nas mais diversas áreas, mas, para efeito de nossa apertada análise, especialmente na estrutura de segurança pública, é cada vez mais necessário rediscutir “fórmulas” para a busca da efetividade normativa.

Temos, no papel, um arcabouço de normas que justificariam um Estado Democrático e Social de Direito, mas que na prática dos órgãos do sistema penal, como bem sabemos, acabam sendo sufocadas pelo argumento da utilidade, da eficiência e da necessidade. A ideia organicista e funcionalista de que tudo se justifica (ou se legitima) em nome do são sentimento do povo brasileiro é de arrancar rasgados elogios de “democratas” da estirpe de Hitler.

O fato é que, nessa tarefa de gestor de expectativas, acossado pela avalanche de cobranças, o Estado tem recorrido a fórmulas velhas, peculiares em regimes autoritários, transformando o “Estado de Direito” em “Estado de Polícia”, como se, em outros tempos, isso já não tivesse sido testado. O resultado, todos nós conhecemos.

O Estado de Direito seria, nesse sentido, para citar o português Rui Cunha Martins, quando de sua participação no II Congresso Internacional de Ciências Criminais, realizado em homenagem ao mestre Luigi Ferrajoli em outubro deste ano no Rio de Janeiro, uma espécie de defraudador de expectativas com suas fórmulas garantistas. A sociedade cobra celeridade e eficiência que, na maioria das vezes, tem "justificado" a supressão de garantias.
Nesse contexto, interessa às autoridades que exercem inebriadamente o poder, estimular uma cultura do medo, esse gigante negro da alma de que tão bem falou Emilio Mira y López. Assim, quanto mais amedrontada estiver a sociedade, mais complacente com arbitrariedades ela será, mais abusos ela tolerará diante desse gigante, bastando, obviamente, que a motivação esteja calcada no “bem comum”.

Sobre isso e por fim, prefiro que, por mim, fale o escritor Mia Couto. Em 2011, na conferência de Estoril sobre segurança, Couto fez uma análise extremamente interessante sobre o uso do medo e o comportamento social complacente diante de abusos, transcrita abaixo.

Aos que preferem assistir, aqui o link http://www.youtube.com/watch?v=jACccaTogxE

Transcrição da intervenção de Mia Couto na Conferência do Estoril 2011

Bom,

Nada mais inseguro do que um escritor numa conferência sobre segurança, um escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e na anterior edição… preciso de um abrigo, preciso de um refúgio… é um texto que vou ler… o presidente tinha dito que eu devia falar espontaneamente... não sou capaz em sete minutos. Eu escrevi este texto que vou ler e chama-se Comemorar o Medo.

 Comemorar o Medo

O medo foi um dos meus primeiros mestres.

Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos actuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.

Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinaram a recear os desconhecidos. Na realidade a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e conhecidos.

Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos.

Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.

O medo foi afinal o mestre que mais me fez desaprender.

Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional. Os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência e um ateu barbudo com um nome alemão.

Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis e Carl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história e, a mais grave dessa longa herança de intervenção externa, é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo a oriente e a ocidente e, por que se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação, precisamos de intervenção com legitimidade divina.

O que era ideologia passou a ser crença. O que era política tornou-se religião. O que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas.

A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem:

Para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.

Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível.

Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo estas:

ü  Por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento?

ü  Por que motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilião e meio de dólares em armamento militar?

ü  Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exactamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi?

ü  Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra, essa arma chama-se fome!

Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome.

O custo para superar a fome mundial seria uma fracção muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo uma em cada três mulheres, foi ou será, vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo facto simples de serem mulheres.

A nossa indignação porém é bem menor que o medo!

Sem darmos conta fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha, a Grande Muralha, que foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra, são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos mas não há hoje no mundo um muro que separe os que têm medo dos que não têm medo.

Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente.

Citarei Eduardo Galiano acerca disto, que é o medo global, e dizer:

Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras e, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.

Muito obrigado.

sábado, 12 de outubro de 2013

Assim pediu o arquivamento: "Bandido que dá tiro para matar tem que tomar tiro para morrer"

Expressar o sentimento de frustração, indignação e de revolta diante da ineficiência do Poder Público na resolução dos problemas que afligem cotidianamente a cada um de nós é comportamento que pode e deve ser encarado com naturalidade.
O cidadão, que espera do Estado, na prestação dos serviços básicos (como saúde, educação e segurança), a mesma eficiência e qualidade com que ele arrecada os tributos, há de se sentir, e com razão, injuriado quando se vê vítima desse descompasso. Mas, ainda que num Estado Democrático e Social de Direito, é preciso observar limites de razoabilidade.
A investidura em cargo público, por óbvio, não elimina o cidadão (seus sentimentos, suas aflições e suas convicções) por trás da liturgia da atividade para a qual é pago pelo erário, mas impõe limites intransponíveis, sobretudo no manuseio de normas jurídicas democráticas.
É preciso, portanto, ter serenidade e discernimento suficiente para saber lidar com a profusão de sentimentos que influenciam diretamente a atividade jurídica, especialmente na seara penal. Saber separar o joio do trigo exige um esforço hercúleo, para o qual, infelizmente, nem todo concurso público consegue aferir.
Dessa forma, é de se compreender (e relevar, às vezes!) o desabafo revoltado (descomprometido com os preceitos constitucionais) de um cidadão, de seus amigos e familiares, cuja garantia da segurança, que deveria ter sido assegurada pelo Estado, foi covardemente violada por pura incompetência gerencial. Mas é de se repudiar esse mesmo tipo de comportamento levado a cabo por uma autoridade pública cuja principal tarefa é justamente o zelo pelas garantias constitucionais.
Se começarmos a criar exceções na proteção de nossas garantias, em nome de uma maior eficiência, por exemplo, no “combate ao crime”, o que nos reservará o futuro com um poder punitivo cada vez mais expansivo?
O caso do promotor, conforme se verá acima, faz-nos o alerta. O discurso é fácil e prontamente aplaudido nas mais variadas rodas de incautos, mas extrapola (sem dúvida!) os princípios democráticos com os quais ele mesmo, por foça do cargo, deveria estar comprometido.
Assim, remete-nos aos tempos da barbárie, onde não se percebe, como já nos alertava Bobbio e tantos outro renomados autores, que do discurso da violência não pode nascer uma sociedade da paz.  

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Assim rejeitou queixa-crime sobre injúria: “Futebol é jogo viril, varonil, não homossexual”

Temos mostrado neste espaço, uma série de decisões judiciais que desconstroem o mito da neutralidade do juiz. A ideia esposada na monografia de Thiago Alessandro Fattori, publicada na revista brasileira de ciências criminais, de julho deste ano, amparada pela obra de Antônio R. Damásio, revela a inexistência de uma racionalidade objetiva, despida que qualquer influência interna.

Abaixo, podemos ver o quanto as convicções pessoais do magistrado impregnaram sua decisão.

Processo nº 936-07

Conclusão

Em 5 de julho de 2007. faço estes autos conclusos ao Dr. Manoel Maximiano Junqueira Filho, MM. Juiz de Direito Titular da Nona Vara Criminal da Comarca da Capital.

Eu, Ana Maria R. Goto, Escrevente, digitei e subscrevi.

A presente Queixa-Crime não reúne condições de prosseguir.

Vou evitar um exame perfunctório, mesmo porque, é vedado constitucionalmente, na esteira do artigo 93, inciso IX, da Carta Magna.

1. Não vejo nenhum ataque do querelado ao querelante.

2. Em nenhum momento o querelado apontou o querelante como homossexual.

3. Se o tivesse rotulado de homossexual, o querelante poderia optar pelos seguintes caminhos:

3. A – Não sendo homossexual, a imputação não o atingiria e bastaria que, também ele, o querelante, comparecesse no mesmo programa televisivo e declarasse ser heterossexual e ponto final;

3. B – se fosse homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados...

Quem é, ou foi BOLEIRO, sabe muito bem que estas infelizes colocações exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o ofendido, num TÈTE-À TÈTE”.

Trazer o episódio à Justiça, outra coisa não é senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante, se comparado à grandeza do futebol brasileiro.

Em Juízo haveria audiência de retratação, exceção da verdade, interrogatório, prova oral, para se saber se o querelado disse mesmo... e para se aquilatar se o querelante é, ou não...

4. O querelante trouxe, em arrimo documental, suposta manifestação do “GRUPO GAY”, da Bahia (folha 10) em conforto à posição do jogador. E também suposto pronunciamento publicado na Folha de São Paulo, de autoria do colunista Juca Kfouri (folha 7), batendo-se pela abertura, nas canchas, de atletas com opção sexual não de todo aceita.

5. Já que foi colocado, como lastro, este Juízo responde: futebol é jogo viril, varonil, não homossexual. Há hinos que consagram esta condição: “OLHOS ONDE SURGE O AMANHÃ, RADIOSO DE LUZ, VARONIL, SEGUE SUA SENDA DE VITÓRIAS...”.

6. Esta situação, incomum, do mundo moderno, precisa ser rebatida...

7. Quem se recorda da “COPA DO MUNDO DE 1970”, quem viu o escrete de ouro jogando (FÉLIX, CARLOS ALBERTO, BRITO, EVERALDO E PIAZA; CLODOALDO E GÉRSON; JAIRZINHO, PELÉ, TOSTÃO E RIVELINO), jamais conceberia um ídolo seu homossexual.

8. Quem presenciou grandes orquestras futebolísticas formadas: SEJAS, CLODOALDO, PELÉ E EDU, no Peixe: MANGA, FIGUEROA, FALCÃO E CAÇAPAVA, no Colorado; CARLOS, OSCAR, VANDERLEI, MARCO AURELIO E DICÁ, na Macaca, dentre inúmeros craques, não poderia sonhar em vivenciar um homossexual jogando futebol.

9. Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas, forme o seu time e inicie uma Federação. Agende jogos com quem prefira pelejar contra si.

10. O que não se pode entender é que a Associação de Gays da Bahia e alguns colunistas (se é que realmente se pronunciaram neste sentido) teimem em projetar para os gramados, atletas homossexuais.

11. Ora, bolas, se a moda pega, logo teremos o “SISTEMA DE COTAS”, forçando o acesso de tantos por agremiação...

12. E não se diga que essa abertura será de idêntica proporção ao que se deu quando os negros passaram a compor as equipes. Nada menos exato. Também o negro, se homossexual, deve evitar fazer parte de equipes futebolísticas de héteros.

13. Mas o negro desvelou-se (e em várias atividades) importantíssimo para a história do Brasil: o mais completo atacante, jamais visto, chama-se EDSON ARANTES DO NASCIMENTO e é negro.

14. O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal...

15. Para não se falar no desconforto do torcedor, que pretende ir ao estádio , por vezes com seu filho, avistar o time do coração se projetando na competição, ao invés de perder-se em análises do comportamento deste, ou daquele atleta, com evidente problema de personalidade, ou existencial; desconforto também dos colegas de equipe, do treinador, da comissão técnica e da direção do clube.

16. Precisa, a propósito, estrofe popular, que consagra:

“CADA UM NA SUA ÁREA,

CADA MACACO EM SEU GALHO,

CADA GALO EM SEU TERREIRO,

CADA REI EM SEU BARALHO”.

17. É assim que eu penso... e porque penso assim, na condição de Magistrado, digo!

18. Rejeito a presente Queixa-Crime. Arquivem-se os autos. Na hipótese de eventual recurso em sentido estrito, dê-se ciência ao Ministério Público e intime-se o querelado, para contra-razões.

São Paulo, 5 de julho de 2007

 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Nossas três penas de morte executadas pelo Estado

Em nosso território é inegável a importância que o ordenamento, especialmente o constitucional, dá à vida humana. Como se não bastasse isso, o Brasil ainda é parte de diversos diplomas internacionais com os quais há o compromisso de preservá-la nas condições mais dignas possíveis.

Há, portanto, todo um sistema jurídico mundialmente fomentado que nos permite concluir ser a vida humana, no rol dos direitos humanos, o bem mais caro no âmbito de um Estado Democrático de Direito, cujo reconhecimento é amplo, mas a proteção tem se mostrado deficiente, como bem destacado e desenvolvido por Bobbio em seu “A era dos direitos”.

Assim, em razão das tensões sociais não dissolvidas pela ineficiência estatal, é possível encontrarmos tentativas por parte do legislador populista de implantação de políticas de mitigação que se voltam contra nossos direitos e garantias mais básicas, sempre pautadas, é claro, por boas intenções (como aquelas que povoam o inferno!).

Passeando pela Constituição Federal, núcleo de validade de nosso sistema jurídico, vamos encontrar no art. 5º, inciso XLVII, alínea “a”, de nossa Constituição Federal, uma autorização, excepcional, à pena de morte em casos de guerra declarada nos termos de seu art. 84, XIX.

Assim, esta seria, não fosse o desejo desenfreado do legislador populista (sedento pela simpatia e pelo voto dos incautos) de atender as cobranças renitentes da população por mais Direito Penal, a única situação de autorização direcionada diretamente ao Estado para a supressão de vida humana como forma de pena. É essa, pelo menos, a única legitimada.

Mesmo diante dessa excepcionalidade expressa da pena de morte, é preciso reconhecer que subrepticiamente, como já chamou a atenção parte da doutrina penal, especialmente o professor Luiz Flávio Gomes, a Lei 9.614/98 instituiu nova modalidade de pena de morte (e o que é por!), em caráter administrativo e sem o devido processo legal, cuja execução fica a cargo da autorização do Presidente da República.

Esta lei, que alterou o art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86), eufemisticamente previu, portanto, “medidas de destruição” para aeronaves classificadas como hostis, que tenham infringido o procedimento padrão delineado no já referido artigo.

Tal dispositivo de extermínio, ressalte-se, surgiu em virtude das frequentes investidas de traficantes para transportar drogas pelo espaço aéreo brasileiro, especialmente por sobre a Amazônia, próximo à fronteira com a Colômbia, um dos maiores produtores e exportadores nessa seara.

Vê-se patente, com isso, a inconstitucionalidade na ampliação da supressão da vida humana por (pasmem!) legislação infraconstitucional, o que se reveste de completa falta de razoabilidade diante de um bem garantido constitucionalmente.

Como bem destacado por Luciano Feldens e Lênio Luiz Streck em “Crime e Constituição”, “o estabelecimento de crimes e penas não pode ser um ato absolutamente discricionário, voluntarista ou produto de cabalas”, ou seja, é preciso ter por fundamento a própria constituição que, nesse caso, não deixou espaço para a ampliação da pena de morte.

Um pouco menos controversa neste aspecto, é a terceira modalidade de pena de morte, mas desta feita, não mais contra pessoas físicas. O art. 24 da Lei 9.605/98, a lei dos crimes ambientais, também prevê uma modalidade de pena de morte, só que para pessoas jurídicas.

É esse, por exemplo, o entendimento dos professores Silvio Maciel e Luiz Flávio Gomes, em “Crimes ambientais”, onde destacam que pelo dispositivo já mencionado, será decretada a liquidação forçada da empresa e seu patrimônio, considerado instrumento do crime, como tal, perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional, ou seja, resta decretada a morte da pessoa jurídica.  

Nesse caso, indicam os autores, haveria sintonia com o Pacto de São José da Costa Rica em seu art. 4, cuja interpretação nos levaria a concluir que a pena de morte só teria o rigor da proibição para pessoas físicas.
Por derradeiro, o fato é que vivemos momentos difíceis em matéria de consolidação das conquistas históricas em direitos humanos. A cada crime bárbaro repercutido na mídia, as ondas de mitigação (de retrocesso, diga-se) abalam as estruturas de nosso Estado Democrático, sempre em nome da “segurança”, do “bem comum”, da “sociedade”, bem assim como fizeram nazistas, fascistas e comunistas.

Os discursos são sedutores, pois trazem soluções aparentemente definitivas (como a pena de morte), e, na busca desesperada por soluções, somos tentados a abraçá-los, assim como um dia o fizeram os alemães, os italianos e os russos. O resultado todos já sabemos!

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Assim negou antecipação de tutela à paciente que pretendia medicamento: “Todos somos mortais!”

A insinuação do magistrado na decisão interlocutória abaixo nos faz revisitar (infelizmente) a ideologia nazista, que voltava sua máquina repressiva para as pessoas simplesmente pelo que elas eram (negros, judeus, eslavos e homossexuais, por exemplo).

No caso ora apresentado, o fato de ser aidético e de todas as consequências nefastas advindas disso (inclusive a morte!), deveriam, no entender do magistrado, ser suportadas pelo sujeito por ter contraído o vírus da Aids, ou seja, por seu próprio mérito, senão vejamos:

Sétima Vara da Fazenda Pública - Comarca de São Paulo

Conclusão

Em 26/07/01, faço conclusos os presentes autos ao Dr. Antonio Carlos Ferraz Miller, Juiz de Direito da 7ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo.

Processo nº 968-01

Indefiro a antecipação de tutela.

Embora os autos aleguem ser portadores de AIDS e objetivem medicação nova que minore as seqüelas da moléstia, o pedido deve ser indeferido, pois não há fundamento legal que ampare a pretensão de realizar às expensas do Estado o exame de genotipagem e a aquisição de medicamentos que, segundo os autores, não estão sendo fornecidos pelo SUS.

A lei 9.313/96 assegura aos portadores de HIV e doentes de AIDS toda a medicação necessária a seu tratamento. Mas estabelece que os gestores do SUS deverão adquirir apenas os medicamentos que o Ministério da Saúde indicar para cada estágio evolutivo de infecção ou da doença. Não há possibilidade de fornecimento de medicamentos que não tenham sido indicados pela autoridade federal.

Por outro lado não há fundado receito de dano irreparável ou de difícil reparação. Todos somos mortais. Mais dia menos dia, não sabemos quando, estaremos partindo, alguns, por seu mérito, para ver a face de Deus, isto não pode ser tido por dano.

Daí o indeferimento de antecipação de tutela.

Cite-se a Fazendo do Estado.

Defiro gratuidade judiciária em favor dos autores.

Intimem-se.

São Paulo, quinta-feira, 26 de julho de 2001.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Assim declarou inconstitucional a Lei Maria da Penha: "O mundo é masculino!"

Tarefa difícil a de “dizer o Direito”, sobretudo quando os conflitos alçados ao Poder Judiciário se revestem de certa complexidade. Dos magistrados, nessa tarefa, impõe-se, no mínimo, imparcialidade, o que não garante, por certo, que suas convicções pessoais sejam impressas na sua atividade.

Durante nossa formação, introjetamos todos os tipos de valores éticos, morais, religiosos, enfim, formamos nesse período o que Antonio R. Damásio em seu “O erro de Descartes” chamaria de “marcador-somático”, que vai nos acompanhar no que quer que façamos na vida.

Ao operador do Direito, especialmente os magistrados, cabe atuar com toda serenidade possível para tentar evitar que tais influências internas não deturpem o “espírito das leis”. Ou seja, toda decisão (judicial ou não) passa pela visitação dos valores que construímos durante a vida, mas é preciso respeitar certos limites. 

Com base nisso, colacionamos abaixo (assim tentaremos fazer em outros posts) um desses momentos em que, infelizmente, o “marcador-somático” falou mais alto do que o conhecimento técnico-jurídico, senão vejamos:

Autos nº 222.942-8/06 (“Lei Maria da Penha”)

Decisão referente à Lei Maria da Penha proferida pelo Juiz de Direito de Sete Lagoas/MG.

“DECISÃO ...
Ora! Costumamos dizer que assim como o atletismo é o esporte-base, a filosofia é a ciência-base, de forma que temos de nos valer dela, sempre.  Mas querem uma base jurídica inicial? Tome-la então! O preâmbulo de nossa Lei Maior:

 “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundadas na harmonia social e comprometida na ordem interna e internacional, com solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da Republica Federativa do Brasil.” — grifamos.

Diante destes iniciais argumentos, penso também oportuno — e como se vê juridicamente lícito — nos valer também de um julgamento histórico, filosófico e até mesmo religioso para se saber se esse texto, afinal, tem ou não autoridade. Permitam- me, assim, tecer algumas considerações nesse sentido.

Se, segundo a própria Constituição Federal, é Deus que nos rege — e graças a Deus por isto — Jesus está então no centro destes pilares, posto que, pelo mínimo, nove entre dez brasileiros o têm como Filho Daquele que nos rege. Se isto é verdade, o Evangelho Dele também o é. E se Seu Evangelho — que por via de conseqüência também nos rege — está inserido num Livro que lhe ratifica a autoridade, todo esse Livro é, no mínimo, digno de credibilidade — filosófica, religiosa, ética e hoje inclusive histórica.

Esta “Lei Maria da Penha” — como posta ou editada — é portanto de uma heresia manifesta. Herética porque é anti-ética; herética porque fere a lógica de Deus; herética porque é inconstitucional e por tudo isso flagrantemente injusta. Ora! A desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher — todos nós sabemos — mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem.

Deus então, irado, vaticinou, para ambos. E para a mulher, disse:
“(...) o teu desejo será para o teu marido e ele te dominará (...)” Já esta lei diz que aos homens não é dado o direito de “controlar as ações (e) comportamentos (...)” de sua mulher (art. 7º, inciso II). Ora! Que o “dominar” não seja um “você deixa?”, mas ao menos um “o que você acha?”. Isto porque o que parece ser não é o que efetivamente é, não parecia ser. Por causa da maldade do “bicho” Homem, a Verdade foi então por ele interpretada segundo as suas maldades e sobreveio o caos, culminando — na relação entre homem e mulher, que domina o mundo — nesta preconceituosa lei.

Mas à parte dela, e como inclusive já ressaltado, o direito natural, e próprio em cada um destes seres, nos conduz à conclusão bem diversa. Por isso — e na esteira destes raciocínios — dou-me o direito de ir mais longe, e em definitivo! O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é masculina! Jesus foi Homem! Á própria Maria — inobstante a sua santidade, o respeito ao seu sofrimento (que inclusive a credenciou como “advogada” nossa diante do Tribunal Divino) — Jesus ainda assim a advertiu, para que também as coisas fossem postas cada uma em seu devido lugar: “que tenho contigo, mulher!?”.

E certamente por isto a mulher guarda em seus arquétipos inconscientes sua disposição com o homem tolo e emocionalmente frágil, porque foi muito também por isso que tudo isso começou.”

Veja a sentença completa aqui 

Tivemos a oportunidade de falar da constitucionalidade da Lei Maria da Penha aqui
http://francajunioradv.blogspot.com.br/2013/08/mulheres-da-coisificacao-lei-maria-da.html


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Menores de 14 anos e relação sexual consentida: típico ou atípico?

O manuseio das normas jurídicas sempre foi uma atividade permeada de intensas discussões e controvérsias, principalmente entre juristas, sociólogos e filósofos. Saber encontrar a solução mais adequada diante do conflito é o mais cobiçado objeto dos desejos dos profissionais dessas áreas.

Não bastassem todas as dificuldades, os debates se intensificam quando os princípios, bens ou valores envolvidos gozam de um status de direito humano, assim como é o caso da dignidade da pessoa humana.

É justamente uma das facetas dessa dignidade que veio a ser protegida expressamente pelo legislador penal, por conta da Lei 12.015/2009, no título dos chamados crimes sexuais (artigos 213 a 234). A motivação para as adaptações ao nosso septuagenário código penal foi a necessidade de trazê-lo à sociedade “moderna”, cujos costumes degeneraram, dentre outras coisas, para reiteradas práticas de abuso sexual, especialmente contra crianças e adolescentes.

Sobre esse aspecto, importa-nos discorrer sobre o modelo encartado no art. 217-A, que estabelece pena de 08 a 15 anos de reclusão para quem pratica qualquer atividade sexual (ainda que consentida) com menor de 14 anos. Tão logo entrou em vigor o dispositivo (uma releitura do antigo art. 224, revogado pela 12.015/09), surgiram questionamentos sobre os limites de sua aplicação.

O novo artigo teria deixado espaço para interpretações que excluíssem a responsabilidade penal de alguém que praticou ato sexual com menor de 14 anos? Afinal, o consentimento de um menor de 14 anos para um ato sexual poderia ser considerado válido? É esse é o ponto nevrálgico!

Por mais que no processo interpretativo nos esforcemos para apontar a evolução de nossos costumes ao ponto de constatarmos que os menores de 14 anos de hoje não são mais aqueles seres de outrora enclausurados e impossibilitados de se nutrirem de todo tipo de informação (inclusive sobre sexo!), é inevitável o apego ao “espírito” da lei.

Dessa forma, válido ou não, por mais experiência sexual e informação que tiver o menor de 14 anos, tal consentimento não deve servir para afastar as consequências determinadas pelo art. 217-A, simplesmente porque o mesmo surgiu com a finalidade de dar efetiva proteção a um bem já alçado à categoria inalienável de direito humano, ou seja, à dignidade sexual.

Cabe ao maior imputável conscientizar-se de que não deve manter relações sexuais com menores de 14 anos, ainda que para isso sejam “convidados” por eles, sob pena de sofrerem com a responsabilização penal.

O ingresso cada vez mais precoce de crianças e adolescentes em atividades sexuais não sustenta argumentos de descriminalização por se afastar consideravelmente da intenção do legislador penal nesses casos.

Filiamo-nos, portanto, por força das circunstâncias acima descritas, até que nos apresentem razões mais fortes, ao entendimento de que essa presunção de vulnerabilidade é absoluta (ou seja, o fato é típico apenas pelo requisito da idade, havendo, naturalmente, a ciência do sujeito sobre isso), não comportando requisitos subjetivos (como tem insistido alguns tribunais), exigindo-se a indiferente análise da capacidade de discernimento do menor de 14 anos para a prática do ato sexual.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Liberação indiscriminada do aborto viola Constituição Federal

É ponto consensual entre os penalistas modernos que o Direito Penal deve se incomodar apenas com aquelas condutas indesejadas mais relevantes, portanto, realmente graves e intoleráveis. Não que isso implique na ausência de proteção a determinados bens ofendidos de formas mais sutis, cuja regulação deve recair sobre outros ramos, como, por exemplo, o Direito Civil.

A ideia de subsidiariedade que permeia o Direito Penal é proveniente do fato de que é por intermédio dele que se ameaça interferir diretamente em um dos bens mais caros ao ser humano: a liberdade de locomoção. Aliado a isso, não percamos de vista que sua força estigmatizante na sociedade desautoriza, num Estado (verdadeiramente) Democrático de Direito, seu uso indiscriminado (ou administrativo).

A partir dessa linha de raciocínio, surgem os defensores da chamada escola penal minimalista (destacando-se Eugenio Raúl Zaffaroni, Luís Flávio Gomes, Luigi Ferrajoli, entre outros), posicionando-se num patamar intermediário entre os punitivistas (sociedade leiga, boa parte do executivo e do ministério público, entre outros) e os abolicionistas (destacando-se Louk Hulsman, Nils Christie e Thomas Mathiesen).

Dito isto, é preciso que deixemos claro que o presente ensaio não tem a pretensão de se imiscuir no pano de fundo religioso frequentemente erguido e que geralmente contamina o debate sereno sobre o aborto. Nossa intenção é, rapidamente, levantar a discussão sobre questões de cunho técnico-jurídico, fomentando argumentos calcados no ordenamento posto.

Pois bem, antes mesmo de procurarmos saber se teria a mulher o direito de dispor livremente do feto, inclusive com a possibilidade de suprimi-lo, é preciso saber se, diante do bem jurídico envolvido (a vida humana intrauterina), pode o Direito Penal abolir por completo sua proteção. Obviamente que, se a resposta for negativa (como realmente parece ser), teremos poupado uma série preciosa de discussões (uma verdadeira perda de tempo!) sobre os fundamentos prós e contra o abortamento indiscriminado.

Indo direto ao ponto, basta uma consulta, mesmo que despretensiosa, aos primeiros artigos de nossa Constituição, especialmente ao artigo 5º, que daremos por inviável a adoção de uma escola penal abolicionista, que prescinde completamente da utilização do Direito Penal como instrumento de controle social. E é justamente no artigo citado que nossa Carta Magna garante a vida humana, dentro ou fora do útero.

Desta forma, por ser um dos bens constitucionais de maior valor, o que, sem dúvida, legitima a proteção penal, não se autoriza o seu completo desprezo por parte do legislador, ainda que se trate de vida humana intrauterina. Afinal, é vida!

Por consequência, é inevitável concluirmos que a liberdade do legislador penal na criminalização e descriminalização de condutas esbarra nos limites (mínimos e máximos) impostos por nossa Constituição Federal. Da mesma maneira que não permite excessos impondo garantias (como a presunção de inocência, por exemplo), impede-se a proteção deficiente de bens constitucionalmente prestigiados. Sobre este aspecto, são elucidativas as obras de Lênio Streck e Luciano Feldens.

Contudo, é de se reconhecer que a vida, mesmo gozando do mais alto prestígio constitucional, não é bem de integridade intocável. Há, em nosso Código Penal, circunstâncias que permitem a sua supressão, como é o caso da legítima defesa.

Em se tratando do tema a que nos propomos a discorrer (e o fizemos sucintamente, como se percebe), é preciso, para concluir, destacar que é falacioso o argumento de que é preciso legalizar o abortamento, pois o mesmo já recebe a devida atenção legal. São três as possibilidades autorizadas: quando a gravidez é proveniente de estupro ou traz risco de morte da para gestante (art. 128 do CP), e em casos de anencefalia, conforme orientação de nossa Suprema Corte.

Querer mais que isso, liberando o abortamento e desguarnecendo o feto por completo, como já alertamos, é afrontar garantia constitucionalmente expressa, o que só é possível ultrapassar por intermédio de um poder constituinte originário.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Mulheres: da "coisificação" à Lei Maria da Penha

Desde as primeiras aglomerações humanas a discriminação, calcada nos mais diversos fundamentos, aparece como prática frequente na dinâmica social. Neste aspecto, as mulheres são, sem dúvida, as vítimas mais emblemáticas deste tipo de tratamento, cuja distribuição e a valorização de papeis notadamente têm privilegiado historicamente os homens.

Relegadas aos trabalhos domésticos, vistas geralmente como instrumento de reprodução humana e tolhidas da participação do processo político, frutos das ideias difundidas pelo patriarcalismo, as mulheres começaram a reagir diante de sua “coisificação” na sociedade.  

É a partir da década de 50, com a descoberta da pílula, com os movimentos de contracultura e o engajamento na cobrança por direitos e garantias equânimes independente do gênero, que podemos perceber dois interessantes fenômenos: na medida em que conquistavam novos espaços, novos problemas se apresentavam, novas dificuldades precisavam ser superadas.

A abertura do mercado de trabalho para elas, por exemplo, trouxe a figura do assédio sexual, permeada pelo ranço machista até então dominante.

Tratamento igualitário com as mesmas oportunidades que os homens, sempre foram a espinha dorsal do discurso feminista. Fomentar um giro valorativo nos paradigmas culturais arcaicos até então praticados não era tarefa fácil e acabou demandando, para que as cobranças não ficassem apenas no discurso, a intervenção dos ramos do Direito, como um dos principais instrumentos de controle social.

Diante deste histórico de empoderamento, de relação de dominação, de subordinação, de opressão (física ou emocional) que acabaram contaminando o Direito, daí buscar-se justamente através dele formas de não reproduzir mais essa cultura, é imperioso reconhecer a constitucionalidade de iniciativas que, dentro de parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, procurem equalizar as diferenças entre os gêneros.

Assim sendo, neste contexto, apontada a existência de insistentes situações que colocam a mulher em condição de vulnerabilidade, é de se reconhecer a Lei Maria da Penha (11.340/06) como um mecanismo constitucional de otimização do princípio da igualdade, sob sua perspectiva substancial. Fazendo-se valer, desta forma, a máxima de um tratamento igual devido pelo Estado aos iguais, e, como no caso, um tratamento desigual devido aos desiguais.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Algo está errado: imprensa é mais confiável que o judiciário?

Numa sociedade como a nossa, orientada por princípios democráticos, a existência de instituições oficiais fortes, bem estruturadas, respeitadas e eficazes, reveste-se de uma importância singular. São elas que garantem as conquistas históricas até aqui observadas.

Quando o Estado, por suas ramificações, funciona nos limites do que está encartado em nossa Lei Maior, não há outra consequência senão a promoção de justiça social. É esse, portanto, o ingrediente mais significativo no combate às desigualdades, ao preconceito, à intolerância e, por consequência, à crescente criminalidade.

Nesse delicado papel, de gestor não apenas das normas, mas, sobretudo, de expectativas sociais, notadamente sobressai-se o ente a quem entregamos o poder de dar a “última palavra” em eventuais conflitos: o Judiciário.

Contudo, se falta credibilidade, por uma série de deficiências, no órgão garantidor das garantias, no dizer do mestre italiano Ferrajoli, ou seja, no templo guardião de nossos direitos, é sinal de que a democracia padece sorrateiramente. Vivemos, assim, sob a égide de uma democracia formal, reconhecida apenas no papel.

Desde 2008 pesquisas realizadas em diversos estados brasileiros ganham notoriedade nos grandes meios de comunicação apontando o grau de credibilidade das instituições públicas para sociedade e, obviamente, destacando a boa colocação da imprensa frente às mesmas.

Traduzindo: as informações transmitidas pela imprensa de um modo geral, têm mais chances de serem tomadas como verdadeiras e corretas do que uma decisão judicial, crivada pelo devido processo legal, pela ampla defesa, pelo contraditório e seus consectários.

Assusta-nos é a sutileza com que boa parte da grande mídia age neste processo de enfraquecimento das instituições do Estado. Como bem salientou a professora Alice Bianchini outro dia em sala de aula, as reportagens, na maioria das vezes, não citam a pena mínima do crime, ponto de partida obrigatório para o magistrado. Só se fala da pena máxima, desta forma, como dificilmente alguém é condenado à pena máxima, pelas garantias que existem, quando o sujeito é condenado bem próximo da mínima, a sociedade, que emocionalmente cobra sempre a máxima, fica frustrada, gerando sensação de impunidade e leniência.

Mas nossa preocupação não deve se conter a isso. Quais as reações das autoridades constituídas diante desse grave disparate? Seria uma análise crítica voltada para a melhoria das estruturas arcaicas e excessivamente burocráticas? Decididamente não! A solução mais empregada pode-se resumir em uma só palavra: Populismo!

É assim que, na maioria dos casos, revidam algumas autoridades diante do problema. Fórmula simples, baseada na retórica, que se bem manuseada, surte os efeitos desejados: encontram braços fraternos, aconchegantes, solidários, oferecidos por incautos, que, por sua vez, difundem, propagam, dão eco, apaixonam-se pela “causa”. É o casamento perfeito entre a ingenuidade (dos que propagam) e a má-fé (dos que propõem fórmulas populistas).

Aqui mesmo neste espaço temos insistentemente alertado para os perigos desses movimentos que rondam as bases de nossa jovem democracia, como também temos destacado a necessidade de mudança de paradigmas, mentais e estruturais.

Saltam aos olhos os defeitos que nossas instituições possuem (inclusive o judiciário) e, pela mentalidade e estrutura persistentes, acabam fomentando a perpetuação dos mesmos. É preciso cobrar sim, com veemência se preciso, mudança de rumo, de atitude, de postura, desde que seja, evidentemente, para promover uma maior aproximação com os princípios democráticos citados no início, pois somente desta forma estaremos exercendo uma verdadeira democracia substancial, fortalecendo as instituições e, consequentemente, nossas valiosas garantias.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

A vulnerabilidade social como garantia fundamental na análise do delito



Ao longo da história, a relação entre o crime e o castigo é ponto de constantes discussões entre expoentes das mais variadas searas. Na dogmática penal, na filosofia, na política, na sociologia, enfim, incontáveis são as teses sobre a fundamentação e a necessária ligação entre ambos os institutos.

Mesmo diante de tantas ideias, convencionou-se que fica a cargo do Estado, tomando por base a perspectiva democrática, por força do contrato social e com a óbvia participação popular, o papel de construir mecanismos que tornem o campo social menos fértil para o cometimento de infrações, evitando-se, assim, a aplicação das desagradáveis reprimendas oficiais.

Essa hercúlea tarefa estatal, grosso modo, pode-se traduzir como consistente na realização de condutas afirmativas e otimizadoras dos direitos fundamentais, que buscam uma sociedade mais justa, calcada, por exemplo, nos ideais da Revolução Francesa, ou seja, no respeito às liberdades, à solidariedade e à igualdade.

É nesse panorama de responsabilidades compartilhadas e de existência de garantias (limites) na tarefa de buscar essa sociedade ideal, que surge a discussão acerca do princípio da vulnerabilidade.

A vulnerabilidade, por sua vez, assume nítida função de garantia no âmbito de reprovabilidade do injusto, devendo interferir na culpabilidade, além de poder reforçar com senso de justiça as circunstâncias de graduação da pena do agente.

Sobre isso, importa-nos destacar as lições, que nos guiam neste ensaio, do mestre argentino Eugênio Raúl Zaffaroni, idealizador da tese da vulnerabilidade como parte do reconhecimento do Estado de sua mea culpa, das consequências incômodas de suas deficiências enquanto gestor das expectativas sociais.

Temos inegavelmente a obrigação primária de seguir o Direito Posto, as regras de comportamento que ajudam a fomentar a paz social, a estabilidade, a tranquilidade no ambiente em que vivemos, mas mais do que nós, cidadãos comuns, tem o Estado essa responsabilidade, e quando dela se furta ou se descuida, em qualquer área (saúde, educação e segurança, por exemplo) produz tensões capazes de desaguar em infrações penais.

Dessa forma, a ausência (ou deficiência estrutural) do poder público (nos três níveis), muito comum no Brasil, diga-se de passagem, acaba fazendo surgir bolsões de vulnerabilidade, repleto de cidadãos inconformados, incomodados ou no mínimo desconfortáveis com a (falta de) atenção dispensada aos seus problemas mais elementares pelas autoridades constituídas.

Não esqueçamos que, evidentemente, o problema tende a se agravar quando nos deparamos com o modelo moderno de sociedade fomentado pelas grandes mídias (a próposito, veículos imprescindível para as multinacionais adoradoras do consumismo), em que se apresentam produtos que resolvem quase tudo na vida das pessoas, mas que na verdade, não acrescentam absolutamente nada.

Ironicamente, é justamente a classe mais desprestigiada pelo Poder Público nas suas obrigações mais comezinhas, a mais “selecionada” pelos órgãos de repressão. Muito embora nós tenhamos assistido nos últimos anos uma mudança de paradigma, com membros de classes mais abastadas e proeminentes da sociedade, especialmente políticos, figurando como alvo de operações policiais, muitas vezes exibidos como troféus através da mídia (que faz do crime produto), como símbolos de um Estado em vias de desespero tentando aplacar o sentimento crescente de insegurança, pois como bem lembra Eduardo Galeano “cada vez que um delinquente cai varado de balas, a sociedade sente um alívio na doença que a atormenta”.

Por fim, a teoria da vulnerabilidade, em termos simples, busca efetivar garantias irradiadas pela dignidade da pessoa humana, fundamento de qualquer democracia, na medida em que orienta o Estado-Juiz a avaliar não apenas o texto legal ou dogmático, mas, sobretudo, o contexto social em que estava imerso o agente ao praticar o ato de aparente rebeldia.

Contudo, nada mais oportuno do que cobrar que aqueles que padecem das reiteradas deficiências ou ausências dos poderes constituídos e que, por consequência, integram esses “campos de vulnerabilidade”, sejam considerados na medida desta desigualdade.


quarta-feira, 3 de julho de 2013

Albert Einstein e sua influência no Direito Penal

O final do século XIX representa um divisor de águas para a história do Direito Penal moderno. Até então, as escolas que se dedicavam a definir e a estudar a estrutura do delito ainda eram muito incipientes, ou seja, não apresentavam um sistema suficientemente capaz de abarcar grande parte das problemáticas que envolvem a matéria. Firma-se na Alemanha, portanto, nessa época, como referência desse momento ímpar, a chamada escola causalista.

Buscando explicar o Direito Penal e a conduta humana através das bases naturalistas (tais como a física, química, biologia, enfim), supondo-se mais objetividade, confiabilidade e segurança, um dos grandes expoentes desse paradigmático movimento foi, sem dúvida, Franz Von Liszt, que, vivenciando uma atmosfera em que as ciências do “ser” impregnavam o jeito de explicar o mundo, utilizava como parâmetro de sua teoria do delito as leis da causa e do efeito.

A percepção do mundo é cíclica, como sabemos, ou seja, os paradigmas que influenciam na forma como as pessoas interpretam os fenômenos com os quais tomam contato na sociedade se renovam de tempos em tempos. Novos comportamentos, novas descobertas científicas, enfim, novas formas de ver o mundo nos são apresentadas ao longo dos séculos.

Contudo, cada tempo tem a sua maneira de enxergar o mundo, assim, para as pessoas da época (os causalistas especialmente), a ciência era capaz de produzir verdades universais, que deveriam guiar o Direito Penal a um porto seguro e confiável, alheio ao subjetivismo.

Explicava-se praticamente tudo, àquela época, como dissemos, com base na lei da causa e do efeito. Então, Liszt, como jurista, é um dos grandes responsáveis por essa aproximação do Direito Penal com as bases das ciências naturais. Processo exaustiva e magistralmente explicitado pelo professor Fábio André Guaragni em sua obra “Teorias da Conduta”, lançada pela editora Revista dos Tribunais.

Essa assepsia de subjetividade na análise da estrutura do delito passou a incomodar, por exemplo, aos que não encontravam respostas satisfatórias sobre os institutos da tentativa e da omissão, o que acaba por provocar o início da derrocada da ideia dessa neutralidade típica dos causalistas.

É nesse cenário discursivo, de plena ebulição teórica, que nos valemos da genialidade do físico alemão Albert Einstein pra destacar que, com sua ideia de teoria da relatividade, difundida a partir de 1905, esfacelava-se a física tradicional, ou seja, as bases tidas como extremamente confiáveis, produtoras de verdades até então inabaláveis (como as concepções tradicionais de tempo e de espaço) estavam desmoronando, sendo postas à prova.

Nessa esteira, as teses naturalistas e, consequentemente causalistas, sofreram duros golpes, pois seus principais atrativos eram bombardeados por críticas de difícil refutação. Essas bases não eram mais tão confiáveis como aparentavam ser.

Diante disso, no campo do Direito Penal, a necessidade de se deixar influenciar pelo mundo do “dever ser” passou à ordem do dia na estruturação do delito. Frank, Freudenthal, Goldsmith, Mezger, dentre outros, encarregaram-se, influenciados pelas ideias de Kant, cada um a seu modo, de ressaltar a importância da valoração nessa construção teórica, ainda hoje em franca evolução.

O fato é que coube a Einstein relativizar os parâmetros mais significativos da física, um dos ramos mais destacados das ciências naturais, venerada pelos causalistas, ajudando, por tabela, na mudança de paradigma sobre o conceito e os substratos constitutivos do delito.

Não é por acaso que o nome deste admirável cientista, com o passar dos tempos, vem sendo associado ao sinônimo de gênio, pois o conjunto de sua obra impactou não apenas a física, foi muito além, como pudemos perceber nessa apertada e superficial análise.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

As dificuldades da insignificância no Direito Penal brasileiro



Criado pelos romanos sob o conceito “minimus non curat praeter” (do que é mínimo os tribunais não cuidam) e inicialmente utilizado no âmbito do Direito privado, o princípio da insignificância ganha contornos de importância para o Direito Penal na década de 70, no bojo do funcionalismo moderado do alemão Claus Roxin.

Estreitando as relações entre o Direito Penal e a Política Criminal, Roxin rompe com o ceticismo causal de Von Liszt e sustenta a inviabilidade de separação entre as duas matérias, devendo, nessa esteira, o operador da lei fazer uma espécie de interpretação restritiva do tipo, reconhecendo, em determinadas circunstâncias, a bagatela excludente da responsabilidade penal, como tem admitido nossa Suprema Corte em inúmeros julgados.

Dessa forma, a ideia propalada atualmente, principalmente pelos funcionalistas, é a de que o Direito Penal não deve se ocupar de condutas incapazes de ofender, de forma relevante, o bem jurídico tutelado. Na modernidade, a preocupação, dentre outras coisas, precisa ser com a: a) proteção exclusiva do bem jurídico; b) preferência da atividade do jurista sobre a do legislador.

Quando o bem não precisa de proteção, não deve o Direito Penal se ocupar dele no caso concreto, mantendo-se nos parâmetros da intervenção mínima. Aqui, há um desapego à técnica jurídica que sucumbe face à falta de necessidade de atuação do Estado no exercício de seu jus puniendi. A lei, portanto, é apenas um ponto de partida, não necessariamente o ponto de chegada do intérprete.

Mas, ressalte-se, sua aplicação não é gracisosa, pelo contrário, reveste-se de excepcionalidade. Para que a insignificância seja aplicada como excludente da dimensão objetiva do fato típico é preciso observar requisitos ligados ao fato, atentando para a mínima ofensividade da conduta, a ausência de repercussão social, a inexpressividade da lesão, a falta de perigo social; e requisitos ligados às pessoas, tanto ao agente quanto à vítima.

Contudo, mesmo com bases sólidas, coerentes e maximizadoras de garantias constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, conforme resumidamente procuramos demonstrar acima, a insignificância encontrou resistência em muitos juízes e tribunais brasileiros. O ranço positivista radical engessava aqueles que não enxergavam o Direito para além das normas postas expressamente no ordenamento, e a bagatela, para eles, padeceria deste mal.

A insistência doutrinária na possibilidade de adequação dos parâmetros lançados por Roxin em nosso Direito Penal, destacando-se em especial Eugênio Raul Zaffaroni (com sua tipicidade conglobante) e Luiz Flávio Gomes (com sua teoria constitucionalista do delito), dois dos mais influentes entre os penalistas brasileiros, acabou ganhando  força e se consolidando com o reconhecimento do Supremo Tribunal Federal em inúmeros casos até aqui julgados.

Por fim, as divergências quanto à existência expressa ou não deste princípio em nosso Direito Posto, o que servia de argumento num primeiro momento para alguns conservadores positivistas, encontram-se superadas pelos argumentos já expostos, tendo em vista que esses novos paradigmas encontram arrimo na dignidade da pessoa humana e privilegiam a intervenção mínima.

Reconhece-se, entretanto, que ainda há certa dificuldade, e em alguns casos até divergências, quanto aos critérios de aplicação da insignificância. Questões sobre a reincidência e a reiteração criminosa, o valor sentimental do bem, os crimes tributários, entre outras situações de densa carga valorativa, ainda provocam consideráveis discussões nos tribunais e na doutrina penal.

Sem que tenhamos fórmulas prontas para a aplicação da insignificância, e assim deve ser o Direito, sempre suscetível ao dinamismo das relações sociais, mas intransigente na proteção de nossas garantias, finalizamos nossa exposição apontando para a importância das circunstâncias do caso concreto na resolução do conflito.

São essas particularidades, se bem observadas e confrontadas com os institutos jurídicos garantistas, que determinarão se o resultado desta tarefa, muitas vezes hercúlea do intérprete, se amolda a um substancial Estado Democrático de Direito.