Cultura

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Contra os índices de violência entregue sua arma, seu carro, seu dinheiro...



Ao Estado, como sabemos, cabe a tutela da paz pública, o monopólio do Direito Penal e Processual Penal, a responsabilidade de fomentar e manter a harmonia, a ordem e o respeito mútuo no tecido social.

Não custa lembrar uma vez mais, como temos feito insistentemente neste espaço, que com os índices alarmantes da violência em nosso território, é natural a busca por soluções imediatistas e relativamente simples de serem postas em prática, sobretudo quando não demandam mudanças estruturais no arcaico e viciado aparelho estatal brasileiro.

Afinal, mudanças estruturais, de rumo mesmo, de foco, de prioridades, com a implantação de uma política séria de combate às causas da criminalidade se traduziriam em inconvenientes gastos, cujos resultados certamente não viriam a atender as pretensões eleitoreiras ao final de quatro anos.

Estimular a participação popular nesse processo de combate à criminalidade é salutar e adequado a um Estado Democrático de Direito. Temos, de fato, responsabilidade com a construção de uma sociedade ideal, considerando-se, inclusive, que somos todos participantes do mesmo contrato social.

Mas a lógica que muitas autoridades (algumas atraídas pelo discurso fácil e sedutor aos ouvidos de eleitores incautos, ávidos por fórmulas prontas) e líderes de organismos privados (alguns afetados por traumas vivenciados em família, vítimas ainda atordoadas diante dos males produzidos pelo que hoje combatem) procuram implantar no senso comum é, no mínimo, incoerente.

É cômoda para muitos governantes a construção da tese de que a devolução da arma de fogo que está com o cidadão de bem é o que vai fazer “virar o jogo” contra a criminalidade. A admirável insistência no argumento, digna da escola Goebbelsiana, insere, de certa forma, no imaginário popular que o problema não está na falta de sintonia e na precariedade dos aparelhos de segurança pública frente ao poderio do crime organizado, mas no cidadão de bem que possui a arma para a utilização em casos extremos, como a proteção de sua família.

Partem de fatalidades, de casos particulares que comovem (como a morte negligenciada de crianças), para o geral. Querem nos fazer ver a exceção como a regra. Como os adeptos do positivismo criminológico, analisam os casos práticos mais notáveis, mas esquecem-se dos milhares de outros exemplos que não são convenientes à pesquisa.

É realmente a arma de fogo o problema da criminalidade crescente? Seria, então, o veículo o problema das alarmantes mortes no trânsito? O dinheiro, por sua vez, a causa para o aumento do tráfico de drogas, já que ninguém a fornece gratuitamente? Se respondermos positivamente, por coerência e lógica, devemos fazer campanhas para que entreguem não apenas as armas, mas seus veículos, seu dinheiro, enfim, assim daríamos um “golpe” fantástico, com uma redução abismal, nos números desagradáveis.

Não negamos que a arma de fogo figure como um dos ingredientes da criminalidade, parece-nos evidente que sim, mas não pela arma solitariamente. Há sempre alguém a puxar o gatilho, como sempre haverá alguém guiando um veículo, usando o seu dinheiro para inúmeras finalidades! Não estaria aqui o problema?! No ser humano! É justamente por isso que existem regras, procedimentos rígidos, para que um cidadão possua legitimamente uma arma de fogo.

Estudo divulgado pelas Nações Unidas em 2011 (veja link aqui mesmo no blog) aponta que há uma relação clara entre crime e desenvolvimento. Os países com grandes disparidades nos níveis de renda estão quatro vezes mais sujeitos a serem atingidos por crimes violentos do que em sociedades mais equitativas, ou seja, nosso problema, portanto, o nosso foco, é a falta de políticas que combatam essas desigualdades.

Dessa forma, faço aqui, uma crítica franca, honesta, serena, endereçada apenas aos apaixonados pela causa do desarmamento como se a mesma fosse a panaceia de todos os nossos problemas na área de segurança pública. Antes de “exigirmos” que as pessoas entreguem suas armas, peçamos que elas mesmas se entreguem na construção de um país mais justo, escolhendo bons representantes que priorizem o combate às causas dessas gritantes desigualdades sociais.

A criminalidade é um fenômeno social que, por razões óbvias, somente se transforma pela ação do próprio homem e não pela simples existência de instrumentos potencialmente lesivos em suas mãos. O bom homem, sem que lhe tenham dado justos motivos, jamais se utilizará de uma arma de fogo. E nesse aspecto, o Estado tem papel fundamental, reduzindo as tensões provocadas por sua ausência em diversas áreas de sua responsabilidade.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Direito Penal moderno e a busca pela santidade



A revolução industrial expandida ao mundo a partir do século XIX, propulsora de avanços tecnológicos e científicos, fomentou na sociedade a sensação de que grande parte de seus problemas seriam solucionados. Em um mundo industrializado, apresentado à modernidade, a pujança econômica obtida com esse processo evolutivo parecia ter potencial suficiente para superar quaisquer barreiras que frustrassem as expectativas sociais até então.

Passando ao largo das discussões acerca da natureza do capitalismo, o fato é que, áreas importantes como saúde, educação, transporte, comércio, entre outras, usufruíram desse momento e conquistaram avanços até hoje exaltados.

Obviamente, o Direito Penal também se viu influenciado diante desses acontecimentos marcantes em praticamente todo o mundo, mas, antes de discorrermos a respeito, é preciso esclarecer.

Percebeu-se, com o tempo, passada a euforia inicial, que nem todas as expectativas sociais seriam atendias pela revolução, que nem todas as pessoas, na verdade, pouquíssimas, seriam privilegiadas pelo sistema implantado (que tinha como um de seus principais fundamentos o acúmulo de capitais), e que essa quebra de paradigma com a chegada avassaladora da modernidade acabou, portanto, trazendo efeitos colaterais. Surge, então, o que na expressão do sociólogo alemão Ulrich Beck chamaremos de “sociedade de riscos”.

Pois bem, diante desse quadro, de verdadeira frustração social, as tensões se intensificam e, por consequência, os conflitos se tornam mais frequentes. O estímulo à competição por acesso às benesses do capitalismo acaba figurando como notável ingrediente no incremento de conflitos, com eles, a submissão a fortes riscos.

É nesse momento que as atenções se voltam para um dos ramos do Direito que, na visão social, deveria tutelar todos os bens envolvidos nesses conflitos. Esse ramo é o Direito Penal. 

Essa cobrança, que muitas vezes tem soado em discursos demagógicos como exigência, acolhida em grande parte pelo legislador, faz-nos conviver ainda hoje com uma inflação de normas incriminadoras. Temos em Jesus-Maria Silva Sánchez a melhor obra sobre esse fenômeno do “expansionismo penal”.

Tínhamos, no Direito Penal, certa predileção por proteção de bens individuais (como a vida, a honra, a liberdade, o patrimônio, enfim), mas o foco é nitidamente outro. Os riscos de lesão passam a figurar como o centro das atenções e, consequentemente, o sentimento de insegurança da coletividade.

Diante das insistentes cobranças, como temos alertado em nossos artigos, o Estado passou a criminalizar condutas que seriam potencialmente arriscadas à manutenção da paz social. Privilegia-se, dessa forma, no processo legislativo atual, bens supra individuais (saúde pública, paz pública, fé pública, enfim), controlando-se o máximo possível de condutas para evitar a concretização do risco, daí a expansão penal.

O Estado, pressionado, e incapaz de estabelecer políticas públicas que combatam as raízes do problema da criminalidade (como já tivemos a oportunidade de apontar em outros artigos), tem antecipado cada vez mais a tutela penal procurando evitar danos efetivos, concretos, palpáveis.

Com essa “nova era”, vivenciamos o incentivo de um Direito Penal cada vez mais poderoso e insensível diante do ser humano. Mais do que pertinente as lições do professor Marcelo André, promotor público em Goiás, afirmando que quanto mais antecipamos a tutela penal, desmaterializando ou espiritualizando os bens penais, mais há um afastamento do indivíduo.

Assim, essa obsessão pela criminalização de condutas de risco, mantendo-se as influências atuais, deve nos remeter à procura dos santos, dos gênios, dos puros, e, talvez até, dos mortos (!), únicos que estariam salvos da aplicação da lei penal. 

O exercício da vida é um risco constante, usufruí-la é submeter e ser submetido a riscos! E que, futuramente, consigamos barrar o legislador penal quando ele acostumar-se a resolver todos os problemas da sociedade com leis penais, por entender ser o caminho mais fácil e suscetível aos aplausos calorosos da sociedade

sábado, 20 de abril de 2013

Ato patriótico americano: os poemas de Dante postos em leis



Por influência da obra de Michel Foucault (Vigiar e punir), fomos buscar em um dos maiores expoentes da literatura mundial a inspiração para a titulação deste nosso artigo. É do italiano Dante Alighieri a obra que nos servirá de pano de fundo para uma síntese modesta do famoso ato patriótico norte-americano (ou USA Patriot Act), assinado em outubro de 2001, pelo presidente George W. Bush.

Logo após os atentados terroristas de 11 de setembro do mesmo ano, ainda inebriados pelo impacto dos acontecimentos, congressistas americanos, incitados pelo Executivo, iniciaram os debates sobre a necessidade de medidas enérgicas com duas finalidades: punir os responsáveis exemplarmente e evitar novas agressões.

O resultado dessa movimentação norte-americana, que contou com expressivo apoio popular, para resgatar sua autoestima, um de seus bens mais importantes, pode também, assim como os atentados, ter deixado “vítimas” inocentes. O ato patriótico, dessa forma, vigente ainda hoje, tirou o brilho de um dos documentos mais importantes não apenas da história do país, mas da humanidade: sua Constituição.

Aprovada em 1787 na Filadélfia, a Constituição norte-americana é citada por cerca de oito entre dez juristas, quando o assunto é democracia e marco na proteção dos direitos humanos. A agressão concretizada por Bush, calorosamente aplaudida pelo povo ainda atordoado pelo forte sentimento de vingança, aos princípios democráticos e muito especialmente à dignidade humana, amparados pela Constituição, refaz, em certa medida, o cenário tão bem descrito por Alighieri no inferno de sua Divina Comédia.

Em sua “guerra contra o terror”, a legislação patriótica norte-americana privilegia um afrouxamento de garantias incompatível com um Estado Democrático de Direito. Tortura, prisão sem motivo aparente, sem processo e sem julgamento, execução sumária, invasão de domicílio por ato discricionário da autoridade, interceptação telefônica facilitada, confisco de valores, invasão eletrônica, inaplicabilidade de tratados sobre direitos humanos, entre outras coisas, estão entre as providências adotadas, que, na prática, traz a tona o ultrapassado Direito Penal do Inimigo, uma espécie de releitura moderna da lei de Talião.

O terrorista não é um delinquente qualquer, é o inimigo do Estado, e contra ele vale suplantar qualquer garantia, descendo as autoridades constituídas ao submundo por onde transitam todos os eles, sem se preocuparem com as leis, nem mesmo com a Constituição, pois o que importa mesmo nesse patamar é a utilização de todos os instrumentos disponíveis para a eliminação do inimigo e alcançar a vitória na “guerra”.

Nessa mesma esteira são as lições do professor Marcelo Neves em seu “Transconstitucionalismo”, quando afirma que nesses casos, “não só se supera a política em nome da ´guerra`, mas suspende-se internamente o constitucionalismo e a rule of law em nome da guerra ao ´inimigo combatente`.”

O souvenir mais representativo dessa fase da legislação norte-americana é a prisão de Guantánamo, localizada na ilha de Cuba, para onde, em 2002, mandaram os primeiros combatentes da Al-Qaeda presos no Afeganistão. De lá para cá, Guantánamo tem recebido diversas pessoas sob suspeita de participarem de organizações terroristas, sendo um local praticamente impenetrável para entidades internacionais de proteção aos direitos humanos.

Hoje, cerca de 50 presos em Guantánamo, muitos sem qualquer acusação formalizada ainda, estão em greve de fome, cobrando o fim da odisseia infernal legitimada pelo ato patriótico a que foram submetidos nos porões da prisão. 

Mesmo com os métodos inquisitivos de investigação implantados, a nação mais poderosa do mundo, mais de dez anos após o fatídico 11 de setembro, continua em alerta máximo contra organizações terroristas dentro e fora do país. O povo norte-americano vê-se estimulado a um estado constante de paranoia. Será mesmo esse o método correto para a superação do trauma?

Voltar-se para o esvaziamento de garantias é sempre a primeira de uma série de medidas de muitas autoridades que são recepcionados nos braços da sociedade com fórmulas mágicas para resolver problemas em segurança pública. Mas isso resolve?

Esse caminho tortuoso assemelha-se com o tomado por Dante, personagem da “Divina Comédia”, que quando atravessa o portão do inferno, encontra a inscrição "deixai toda esperança, ó vós que entrais aqui". Tomando de empréstimo algumas das lições de Aquino, não haveremos, portanto, de colher bons frutos se alimentarmos árvores ruins como essas que trazem sombras aos direitos humanos.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Redução da maioridade penal: o que vem depois?



A responsabilização penal é tema bastante discutido ao longo da história do Direito Penal no mundo. Homens, mulheres, crianças, e nem mesmo os animais, escaparam dessa discussão na construção do critério que utilizamos hoje.

Imputar a alguém as consequências de uma infração penal é tarefa que exige um esforço hercúleo do moderno operador do Direito. Ter as normas jurídicas como parâmetro, agregando elementos filosóficos, políticos, principiológicos, entre outros mecanismos que respeitem efetivamente os direitos humanos, é o dever de qualquer magistrado antenado com essa nova era. A era das garantias!

Foram séculos de repressão, suplícios e autoritarismos, até alcançarmos os limites estabelecidos hoje nos Estados Democráticos de Direito. Limites não apenas aos cidadãos, recorde-se, mas especialmente ao Estado no exercício de seu pode punitivo. Pela importância que possuem, por resguardar a dignidade humana e tudo que dela se abstrai, as garantias até aqui conquistadas só podem ser objeto de ampliação e otimização. Isso é fórmula corrente na literatura constitucionalista e internacionalista.

Observamos com preocupação as vozes que se levantam pregando a redução da maioridade penal como a panaceia da crescente criminalidade no país, sempre que a mídia alça à categoria de “celebridade” algum inimputável.

Mudar a realidade com uma canetada, sem atacar a causa (com políticas afirmativas em educação e saúde, por exemplo), é, na prática, o que pretendem. Ora, nem mesmo a pena de morte foi capaz de intimidar significativamente a prática delitiva (basta verificar as experiências de muitos estados norte-americanos), por que razão a redução da maioridade penal o faria? O que vem depois se verificarmos a insuficiência dessa providência? Execuções e suplícios públicos, como os relatados por Foucault em seu “Vigiar e punir”?

Opiniões abalizadas, de juristas de tradição e respeito, mas, com a permissa vênia, em nosso sentir, influenciadas pelo “clamor” da sociedade leiga. Em um exercício de comparação, algo como querer curar uma forte gripe receitando mais lenços ao paciente, quando o correto seria identificar e combater as causas e, assim, evitar o agravamento e a contração de novo resfriado.

Não precisa ser profundo conhecedor da matéria para saber que tipo de efeito prático o atendimento a esse capricho trará: o incremento populacional nas já superlotadas penitenciárias.

Poderíamos traçar uma série de justificativas baseadas na psicologia, na sociologia, na antropologia, na criminologia, enfim, em tantas outras ciências para justificarmos nosso ponto de vista, mas nos basta, por hora, o argumento técnico-jurídico.

É falacioso o argumento de que aos menores de dezoito anos nenhuma consequência lhes é imposta por força de uma infração. Há consequência sim! Obviamente não aquelas devidas aos maiores, mas as consequências existem. Mais brandas, é bem verdade, mas daí a fomentar na sociedade a ideia de que o Estado assume uma postura de completa indiferença para com os menores é, no mínimo, desconhecimento técnico ou má-fé.

Assusta-nos que a discussão nem passe por uma modernização das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, com mais de vinte anos de existência, mas pela radical diminuição da maioridade penal.

Como dissemos, nosso argumento é técnico. O que nos poupa um bom tempo em questões extremamente subjetivas e difíceis de sustentar pela via do “certo” ou “errado”. A questão não é essa!

A maioridade penal é garantia constitucional (art. 228) aos menores de dezoito anos contra o poder punitivo estatal, na medida em que impede o emprego de determinadas punições, as mesmas devidas aos maiores. É direito dos menores, portanto, serem tratados nos termos da legislação específica, por estarem em uma categoria com garantias específicas.

Como garantia individual que é, por força do art. 60, §4º, inciso IV, da Constituição brasileira, não pode ser objeto de alteração por emenda constitucional, não podendo sofrer supressão. A maioridade penal é modalidade clássica de cláusula pétrea.

Reforça-se esse argumento pelos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. A maioridade penal brasileira, a bem da verdade, segue o padrão internacional. Até mesmo o Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma, prevê a maioridade para os dezoito anos. Mudar a maioridade penal é submeter o país às admoestações no âmbito externo, por descumprir cláusula que se comprometeu a respeitar (pacta sunt servanda).

Como venho sustentando neste espaço, assistimos, muitas vezes passivamente, ondas involutivas que procuram arrebatar garantias tradicionalmente existentes em nosso sistema. Cabe-nos, com sobriedade e paciência, passado o pulso energético de discursos inflamados e sedutores pelas fórmulas aparentemente infalíveis de combate à criminalidade, alertar para as consequências dessa postura.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Investigação criminal: a moderna inquisição brasileira



No percurso existente entre o conflito de interesses e sua solução, a proposta ideal de investigação criminal, dentro de uma democracia, é basicamente a de um método dialético, com regras claras e limitadas pela dignidade humana, indiscriminadas e universais, diminuindo o campo de atuação discricionária dos agentes responsáveis pela apuração dos fatos.

A fórmula exposta acima por nós, construída com a colaboração dos mais importantes pensadores ao longo dos séculos, e que ainda hoje é suscetível de adaptações, foi concebida pela observação dos mais horrendos suplícios pelos quais o ser humano poderia passar nas mãos de investigadores. A estes, os soberanos davam a incumbência de encontrar a verdade real, e na busca desse objetivo tudo se justificava.  

O procedimento padrão dentro desse sistema, durante a santa inquisição, por exemplo, estava calcado no confisco do réu perante a sociedade, no segredo sobre acusações e investigações, além do emprego de tortura com vistas àquilo que legitimava essas atrocidades: a obtenção da perseguida verdade real.

No Brasil, precisamos reconhecer que sistemas completamente contrários a uma democracia plena, como o acima exposto, dominaram o país de Cabral até 1988. Nossa estrutura de investigação criminal tinha 488 anos de vida quando surgiu a Constituição que hoje vige, sendo natural, o que não pode ser normal, que atualmente uma “mentalidade inquisitiva” ainda tenha significativa influência nesse processo.

Tramitam no Congresso Nacional, importante ressaltar, os projetos do novo código penal e do novo código de processo penal brasileiro. Mais de vinte anos após o advento da Constituição, que estabelece um Estado regido pelos princípios democráticos, continuamos sob a égide de procedimentos investigativos cuja base se encontra em códigos com mais de 70 anos.

Mesmo com as reformas sofridas ao longo dos anos nesses diplomas, uma postura inquisitorial ainda permeia a atuação de grande parte de agentes estatais nesse particular. De nada adianta operar modificações pontuais, a pretexto de “atualização” se as interpretações continuam sendo influenciadas pelo autoritarismo do sistema antigo.

A quebra radical desse paradigma é o que se verifica na teoria propalada pelo professor italiano Luigi Ferrajoli. Romper com as bases do sistema jurídico inquisitivo ou de qualquer outro que não tenha por fundamento o respeito aos direitos humanos, entrelaçando, para isso, a ciência jurídica, a ciência política, e a filosofia, fundando, assim, as bases de um verdadeiro estado democrático e garantista de direito.

Aproximar ao máximo possível o “ser” do “dever ser” é uma das obstinações de Ferrajoli com a sua teoria do Garantismo, onde sugere uma importante transformação nos sistemas estatais, valorizando os irrenunciáveis direitos humanos, sobretudo diante dessa cobrança social frenética pela resolução de conflitos com a utilização do Direito Penal, que deveria ser mínimo.

Essa teoria, por fim, perpassa por toda uma gama de conceitos e ciências que lhes garantem uma complexidade estrutural digna das mais respeitadas teorias do Direito na atualidade. Ferrajoli, por oportuno, aproxima-se dos contratualistas (cujo conceito central é a valorização do indivíduo), como Jonh Locke, e propõe uma perspectiva de resolução de conflitos sempre baseada em princípios.

Nas lições do professor Aury Lopes Jr, o Garantismo prega uma instrumentalidade constitucional, uma radicalização dos direitos fundamentais, constitucionais e democráticos, o fortalecimento do “eu” como democracia substancial.

Não temos, nessa apertada síntese, a pretensão de transmitir toda a dimensão da tese garantista defendida por Ferrajoli em seu “Direito e razão”, nem pretendemos impô-la como a única saída para as mazelas que encontramos na investigação criminal brasileira, ainda influenciada pelas ideias inquisitivas, mas é um debate que se inicia com boas perspectivas de nos aproximarmos da essência do texto constitucional atualmente vigente.

Há, penso, diante do quadro de desespero do Estado de atender as cobranças da sociedade na área de segurança pública, um convite inadiável ao debate franco, sincero e desapaixonado de nosso sistema de investigação criminal. As penas aumentam, os tipos penais se multiplicam, os presídios proliferam, as polícias, o ministério público e o próprio judiciário atuam com mais rigor e determinação, mas a criminalidade continua crescente, quando pela lógica das posturas adotadas deveria apresentar declínio. 

Apresentamos nitidamente um quadro de involução, onde a obstinação dos aparelhos estatais, até como forma de escamotear suas próprias deficiências em outras áreas, não é mais a verdade real da velha e conhecida inquisição, mas a satisfação do sentimento de impunidade imerso na sociedade. 
Para essa satisfação do bem geral, temos assistido sem nos dar conta do perigo que se avizinha, aquele mesmo perigo que se fez real na santa inquisição, com o esvaziamento de garantias fundamentais.