Cultura

quinta-feira, 4 de julho de 2013

A vulnerabilidade social como garantia fundamental na análise do delito



Ao longo da história, a relação entre o crime e o castigo é ponto de constantes discussões entre expoentes das mais variadas searas. Na dogmática penal, na filosofia, na política, na sociologia, enfim, incontáveis são as teses sobre a fundamentação e a necessária ligação entre ambos os institutos.

Mesmo diante de tantas ideias, convencionou-se que fica a cargo do Estado, tomando por base a perspectiva democrática, por força do contrato social e com a óbvia participação popular, o papel de construir mecanismos que tornem o campo social menos fértil para o cometimento de infrações, evitando-se, assim, a aplicação das desagradáveis reprimendas oficiais.

Essa hercúlea tarefa estatal, grosso modo, pode-se traduzir como consistente na realização de condutas afirmativas e otimizadoras dos direitos fundamentais, que buscam uma sociedade mais justa, calcada, por exemplo, nos ideais da Revolução Francesa, ou seja, no respeito às liberdades, à solidariedade e à igualdade.

É nesse panorama de responsabilidades compartilhadas e de existência de garantias (limites) na tarefa de buscar essa sociedade ideal, que surge a discussão acerca do princípio da vulnerabilidade.

A vulnerabilidade, por sua vez, assume nítida função de garantia no âmbito de reprovabilidade do injusto, devendo interferir na culpabilidade, além de poder reforçar com senso de justiça as circunstâncias de graduação da pena do agente.

Sobre isso, importa-nos destacar as lições, que nos guiam neste ensaio, do mestre argentino Eugênio Raúl Zaffaroni, idealizador da tese da vulnerabilidade como parte do reconhecimento do Estado de sua mea culpa, das consequências incômodas de suas deficiências enquanto gestor das expectativas sociais.

Temos inegavelmente a obrigação primária de seguir o Direito Posto, as regras de comportamento que ajudam a fomentar a paz social, a estabilidade, a tranquilidade no ambiente em que vivemos, mas mais do que nós, cidadãos comuns, tem o Estado essa responsabilidade, e quando dela se furta ou se descuida, em qualquer área (saúde, educação e segurança, por exemplo) produz tensões capazes de desaguar em infrações penais.

Dessa forma, a ausência (ou deficiência estrutural) do poder público (nos três níveis), muito comum no Brasil, diga-se de passagem, acaba fazendo surgir bolsões de vulnerabilidade, repleto de cidadãos inconformados, incomodados ou no mínimo desconfortáveis com a (falta de) atenção dispensada aos seus problemas mais elementares pelas autoridades constituídas.

Não esqueçamos que, evidentemente, o problema tende a se agravar quando nos deparamos com o modelo moderno de sociedade fomentado pelas grandes mídias (a próposito, veículos imprescindível para as multinacionais adoradoras do consumismo), em que se apresentam produtos que resolvem quase tudo na vida das pessoas, mas que na verdade, não acrescentam absolutamente nada.

Ironicamente, é justamente a classe mais desprestigiada pelo Poder Público nas suas obrigações mais comezinhas, a mais “selecionada” pelos órgãos de repressão. Muito embora nós tenhamos assistido nos últimos anos uma mudança de paradigma, com membros de classes mais abastadas e proeminentes da sociedade, especialmente políticos, figurando como alvo de operações policiais, muitas vezes exibidos como troféus através da mídia (que faz do crime produto), como símbolos de um Estado em vias de desespero tentando aplacar o sentimento crescente de insegurança, pois como bem lembra Eduardo Galeano “cada vez que um delinquente cai varado de balas, a sociedade sente um alívio na doença que a atormenta”.

Por fim, a teoria da vulnerabilidade, em termos simples, busca efetivar garantias irradiadas pela dignidade da pessoa humana, fundamento de qualquer democracia, na medida em que orienta o Estado-Juiz a avaliar não apenas o texto legal ou dogmático, mas, sobretudo, o contexto social em que estava imerso o agente ao praticar o ato de aparente rebeldia.

Contudo, nada mais oportuno do que cobrar que aqueles que padecem das reiteradas deficiências ou ausências dos poderes constituídos e que, por consequência, integram esses “campos de vulnerabilidade”, sejam considerados na medida desta desigualdade.


2 comentários:

  1. Boa tarde, França! Texto muito instigante. Mas gostaria de ouvir sua opinião se o "Princípio da Vulnerabilidade - PV" deve ser levado em consideração para todos os tipos de delitos ou somente para aqueles relacionados a "posse". Ex O PV deve ser utilizado para atenuar um roubo do mesmo modo que atenua um abuso sexual?

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    1. Olá Rodrigo, já tive a oportunidade de sucintamente te explicar pelo twitter, mas o faço por aqui para que todos possam acompanhar. Mais uma vez, muito obrigado pela interação neste espaço que criei justamente para isso. Então, a tese da vulnerabilidade não deve se limitar a determinadas espécies de infrações, goza, portanto, de matiz geral, ou seja, o importante é que as falhas estatais que fomentam os bolsões de vulnerabilidade, sejam levadas em consideração na análise e na graduação das consequências do delito. Claro que, não há fórmula ou tabela de quantificações para cada tipo de delito, há que se verificar todas as circunstâncias que permearam o fato, mas em maior ou menor grau (dependendo justamente dessas variantes) a tese da vulnerabilidade deve ser levada em consideração pelos operadores do Direito. Existem críticas à ideia, o que é natural diante de nossa cultura jurídica mais conservadora, inclusive pela extrema subjetividade cerca o dito princípio da vulnerabilidade, mas isso não deve servir como empecilho, uma vez que a "extrema subjetividade" é ojerizada nas fórmulas que têm tendências prejudiciais ao agente, o que não é o caso. Espero ter esclarecido. Abraço!

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