Ao
longo da história, a relação entre
o crime e o castigo é ponto de constantes discussões entre expoentes das mais
variadas searas. Na dogmática penal, na filosofia, na política, na sociologia,
enfim, incontáveis são as teses sobre a fundamentação e a necessária ligação
entre ambos os institutos.
Mesmo diante de tantas ideias,
convencionou-se que fica a cargo do Estado, tomando por base a perspectiva
democrática, por força do contrato social e com a óbvia participação popular, o
papel de construir mecanismos que tornem o campo social menos fértil para o
cometimento de infrações, evitando-se, assim, a aplicação das desagradáveis
reprimendas oficiais.
Essa hercúlea tarefa estatal,
grosso modo, pode-se traduzir como consistente na realização de condutas afirmativas
e otimizadoras dos direitos fundamentais, que buscam uma sociedade mais justa,
calcada, por exemplo, nos ideais da Revolução Francesa, ou seja, no respeito às
liberdades, à solidariedade e à igualdade.
É nesse panorama de responsabilidades compartilhadas e de
existência de garantias (limites) na tarefa de buscar essa sociedade
ideal, que surge a discussão acerca do princípio da vulnerabilidade.
A vulnerabilidade, por sua vez, assume nítida função de
garantia no âmbito de reprovabilidade do injusto, devendo interferir na
culpabilidade, além de poder reforçar com senso de justiça as circunstâncias de
graduação da pena do agente.
Sobre isso, importa-nos destacar as lições, que nos guiam
neste ensaio, do mestre argentino Eugênio Raúl Zaffaroni, idealizador da tese
da vulnerabilidade como parte do reconhecimento do Estado de sua mea culpa, das consequências incômodas
de suas deficiências enquanto gestor das expectativas sociais.
Temos inegavelmente a obrigação primária de seguir o Direito
Posto, as regras de comportamento que ajudam a fomentar a paz social, a
estabilidade, a tranquilidade no ambiente em que vivemos, mas mais do que nós,
cidadãos comuns, tem o Estado essa responsabilidade, e quando dela se furta ou se descuida, em
qualquer área (saúde, educação e segurança, por exemplo) produz tensões capazes
de desaguar em infrações penais.
Dessa forma, a ausência (ou deficiência estrutural) do poder
público (nos três níveis), muito comum no Brasil, diga-se de passagem, acaba
fazendo surgir bolsões de vulnerabilidade, repleto de cidadãos inconformados,
incomodados ou no mínimo desconfortáveis com a (falta de) atenção dispensada
aos seus problemas mais elementares pelas autoridades constituídas.
Não esqueçamos que, evidentemente, o problema
tende a se agravar quando nos deparamos com o modelo moderno de sociedade fomentado
pelas grandes mídias (a próposito, veículos imprescindível para as
multinacionais adoradoras do consumismo), em que se apresentam produtos que
resolvem quase tudo na vida das pessoas, mas que na verdade, não acrescentam
absolutamente nada.
Ironicamente, é
justamente a classe mais desprestigiada pelo Poder Público nas suas obrigações
mais comezinhas, a mais “selecionada” pelos órgãos de repressão. Muito embora
nós tenhamos assistido nos últimos anos uma mudança de paradigma, com membros
de classes mais abastadas e proeminentes da sociedade, especialmente políticos,
figurando como alvo de operações policiais, muitas vezes exibidos como troféus
através da mídia (que faz do crime produto), como símbolos de um Estado em vias
de desespero tentando aplacar o sentimento crescente de insegurança, pois como
bem lembra Eduardo Galeano “cada vez que um delinquente cai varado de balas, a
sociedade sente um alívio na doença que a atormenta”.
Por fim, a
teoria da vulnerabilidade, em termos simples, busca efetivar garantias
irradiadas pela dignidade da pessoa humana, fundamento de qualquer democracia,
na medida em que orienta o Estado-Juiz a avaliar não apenas o texto legal ou
dogmático, mas, sobretudo, o contexto social em que estava imerso o agente ao
praticar o ato de aparente rebeldia.
Contudo, nada
mais oportuno do que cobrar que aqueles que padecem das reiteradas deficiências
ou ausências dos poderes constituídos e que, por consequência, integram esses
“campos de vulnerabilidade”, sejam considerados na medida desta desigualdade.
Boa tarde, França! Texto muito instigante. Mas gostaria de ouvir sua opinião se o "Princípio da Vulnerabilidade - PV" deve ser levado em consideração para todos os tipos de delitos ou somente para aqueles relacionados a "posse". Ex O PV deve ser utilizado para atenuar um roubo do mesmo modo que atenua um abuso sexual?
ResponderExcluirOlá Rodrigo, já tive a oportunidade de sucintamente te explicar pelo twitter, mas o faço por aqui para que todos possam acompanhar. Mais uma vez, muito obrigado pela interação neste espaço que criei justamente para isso. Então, a tese da vulnerabilidade não deve se limitar a determinadas espécies de infrações, goza, portanto, de matiz geral, ou seja, o importante é que as falhas estatais que fomentam os bolsões de vulnerabilidade, sejam levadas em consideração na análise e na graduação das consequências do delito. Claro que, não há fórmula ou tabela de quantificações para cada tipo de delito, há que se verificar todas as circunstâncias que permearam o fato, mas em maior ou menor grau (dependendo justamente dessas variantes) a tese da vulnerabilidade deve ser levada em consideração pelos operadores do Direito. Existem críticas à ideia, o que é natural diante de nossa cultura jurídica mais conservadora, inclusive pela extrema subjetividade cerca o dito princípio da vulnerabilidade, mas isso não deve servir como empecilho, uma vez que a "extrema subjetividade" é ojerizada nas fórmulas que têm tendências prejudiciais ao agente, o que não é o caso. Espero ter esclarecido. Abraço!
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