Uma das exigências de um Estado Democrático de Direito é a
constante justificação dos atos que se realizam nos seus domínios. Não à toa,
alguns dos mais renomados autores constitucionalistas o chamam simplificadamente
de “o Estado que se justifica”.
Na Carta Constitucional brasileira, por exemplo, é lapidar o
mandamento do art. 93, inciso IX, que fulmina de nulidade as decisões não
fundamentadas pelos órgãos do judiciário.
Mas onde encontramos o paradigma justificador? Ora! Não
poderia ser em outro local que não na Constituição Federal e nos tratados
internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte, o que nos remete
à racionalidade, portanto, à serenidade e segurança, típicos de uma verdadeira
democracia.
Nessa tarefa de justificação, o uso de chavões populistas sempre
foi o meio mais cômodo e sedutor desde tempos remotos, sobretudo no manuseio do
Direito Penal e Processual Penal. São
incontáveis os momentos da história do mundo em que a opinião pública se sobrepôs
aos princípios democráticos, rompendo, dessa forma, com a racionalidade.
Naturalmente que há o argumento falho de que numa democracia
move-se o Estado pela opinião da maioria. Sim, é uma possibilidade (a regra,
diga-se)! No entanto, nenhuma maioria, numa democracia substancial, para
homenagearmos Ferrajoli, pode se sobrepor às garantias historicamente
conquistadas. A obra de Bobbio é recheada destas assertivas, que, inclusive, serviram-nos
de inspiração para o título deste ensaio.
Desde o caso Dreyfus, na França, passando pela ascensão de
Hitler (eleito, frise-se!), na Alemanha, até os dias de hoje, autoridades dos
mais diversos níveis, de regra, preferem não abandonar a zona de conforto, norteando
suas atuações sem a pretensão de defraudar a expectativa social. Optam, assim,
por decisões que não comprometam suas posições ou que não exijam maior esforço
de justificativa perante um sentimento já instalado.
Temos nos acostumado, infelizmente, com uma retórica
democrática aliada a atitudes populistas que flertam com o totalitarismo. E
isso, notadamente, é pernicioso ao sistema penal e processual penal
democrático, atualmente, os maiores gestores de expectativas sociais, na
esteira do que sustenta o mestre português Rui Cunha Martins.
Não temos a mínima pretensão de fazer pouco caso da opinião
pública (longe disso!), mas é preciso tomá-la sempre com reservas, em virtude
dos processos geralmente conturbados e viciados de sua formação. O respeito
cego à opinião da maioria, o senso comum, a representação do sentimento do
povo, são elementos que nos remetem à imprevisibilidade, à insegurança, à
completa incerteza na incolumidade das garantias hoje postas (ainda que só no
papel!).
Assim, as justificativas do Estado, especialmente na seara
penal e processual penal, devem estar atreladas, como mostramos, à Constituição
e aos tratados internacionais em direitos humanos dos quais o Brasil é parte.
Temos sim um
ordenamento que nos permite sustentar o argumento de que nossas garantias são
mais importantes que qualquer poder estatal . Nosso problema são as práticas!
Convivemos hoje com a forma mais traiçoeira (e difícil de
ser combatida!) de violação de garantias, como astutamente levantado por
Ferrajoli em seu “Direito e Razão”. Aquela que se utiliza de uma retórica
democrática, cuja prática a contradiz, pelo viés inquisitivo camuflado.
Com isso, permitindo o enraizamento de matizes demagógicas
no sistema penal, enfraquecendo garantias reconhecidas em um processo constitucional,
violando o pacta sunt servanda,
temos, aos poucos, retirados os cadeados da caixa de pandora totalitária, adubando
um terreno formalmente democrático para o surgimento de heróis, como foi no
passado não muito distante.
Por fim, um universo paralelo vai se formando. Somos cada
vez mais familiarizados com os paradoxos. O Estado vai se deixando conduzir, na resolução de conflitos através do sistema penal, pela volatilidade (aqui, recorde-se a obra Bauman) da opinião pública, por
pesquisas de opinião, que, por sua vez, vem servindo de “justificativa” para a
supressão de garantias. Esquece-se a Constituição!
Vivemos numa espécie de sítio do pica pau amarelo, onde o
que deveria ser, não é, como na música de Gilberto Gil, “marmelada de banana,
bananada de goiaba, goiabada de marmelo”, como se quiséssemos, portanto, colher
a paz plantando a guerra.
A resposta a nossa pergunta inicial parece óbvia, mas o
problema é justamente esse. Na pós-modernidade em que vivemos, o óbvio parece
ter deixado ser a regra.
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