Cultura

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Qual o melhor sistema penal, o das leis ou o da opinião pública?

Uma das exigências de um Estado Democrático de Direito é a constante justificação dos atos que se realizam nos seus domínios. Não à toa, alguns dos mais renomados autores constitucionalistas o chamam simplificadamente de “o Estado que se justifica”.

Na Carta Constitucional brasileira, por exemplo, é lapidar o mandamento do art. 93, inciso IX, que fulmina de nulidade as decisões não fundamentadas pelos órgãos do judiciário.

Mas onde encontramos o paradigma justificador? Ora! Não poderia ser em outro local que não na Constituição Federal e nos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte, o que nos remete à racionalidade, portanto, à serenidade e segurança, típicos de uma verdadeira democracia.

Nessa tarefa de justificação, o uso de chavões populistas sempre foi o meio mais cômodo e sedutor desde tempos remotos, sobretudo no manuseio do Direito Penal e Processual Penal.  São incontáveis os momentos da história do mundo em que a opinião pública se sobrepôs aos princípios democráticos, rompendo, dessa forma, com a racionalidade.

Naturalmente que há o argumento falho de que numa democracia move-se o Estado pela opinião da maioria. Sim, é uma possibilidade (a regra, diga-se)! No entanto, nenhuma maioria, numa democracia substancial, para homenagearmos Ferrajoli, pode se sobrepor às garantias historicamente conquistadas. A obra de Bobbio é recheada destas assertivas, que, inclusive, serviram-nos de inspiração para o título deste ensaio. 

Desde o caso Dreyfus, na França, passando pela ascensão de Hitler (eleito, frise-se!), na Alemanha, até os dias de hoje, autoridades dos mais diversos níveis, de regra, preferem não abandonar a zona de conforto, norteando suas atuações sem a pretensão de defraudar a expectativa social. Optam, assim, por decisões que não comprometam suas posições ou que não exijam maior esforço de justificativa perante um sentimento já instalado.

Temos nos acostumado, infelizmente, com uma retórica democrática aliada a atitudes populistas que flertam com o totalitarismo. E isso, notadamente, é pernicioso ao sistema penal e processual penal democrático, atualmente, os maiores gestores de expectativas sociais, na esteira do que sustenta o mestre português Rui Cunha Martins.  

Não temos a mínima pretensão de fazer pouco caso da opinião pública (longe disso!), mas é preciso tomá-la sempre com reservas, em virtude dos processos geralmente conturbados e viciados de sua formação. O respeito cego à opinião da maioria, o senso comum, a representação do sentimento do povo, são elementos que nos remetem à imprevisibilidade, à insegurança, à completa incerteza na incolumidade das garantias hoje postas (ainda que só no papel!).

Assim, as justificativas do Estado, especialmente na seara penal e processual penal, devem estar atreladas, como mostramos, à Constituição e aos tratados internacionais em direitos humanos dos quais o Brasil é parte.

Temos sim um ordenamento que nos permite sustentar o argumento de que nossas garantias são mais importantes que qualquer poder estatal . Nosso problema são as práticas!

Convivemos hoje com a forma mais traiçoeira (e difícil de ser combatida!) de violação de garantias, como astutamente levantado por Ferrajoli em seu “Direito e Razão”. Aquela que se utiliza de uma retórica democrática, cuja prática a contradiz, pelo viés inquisitivo camuflado.

Com isso, permitindo o enraizamento de matizes demagógicas no sistema penal, enfraquecendo garantias reconhecidas em um processo constitucional, violando o pacta sunt servanda, temos, aos poucos, retirados os cadeados da caixa de pandora totalitária, adubando um terreno formalmente democrático para o surgimento de heróis, como foi no passado não muito distante.

Por fim, um universo paralelo vai se formando. Somos cada vez mais familiarizados com os paradoxos. O Estado vai se deixando conduzir, na resolução de conflitos através do sistema penal, pela volatilidade (aqui, recorde-se a obra Bauman) da opinião pública, por pesquisas de opinião, que, por sua vez, vem servindo de “justificativa” para a supressão de garantias. Esquece-se a Constituição!

Vivemos numa espécie de sítio do pica pau amarelo, onde o que deveria ser, não é, como na música de Gilberto Gil, “marmelada de banana, bananada de goiaba, goiabada de marmelo”, como se quiséssemos, portanto, colher a paz plantando a guerra.

A resposta a nossa pergunta inicial parece óbvia, mas o problema é justamente esse. Na pós-modernidade em que vivemos, o óbvio parece ter deixado ser a regra. 

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