No percurso existente entre o
conflito de interesses e sua solução, a proposta ideal de investigação criminal,
dentro de uma democracia, é basicamente a de um método dialético, com regras claras e limitadas pela dignidade humana,
indiscriminadas e universais, diminuindo o campo de atuação discricionária dos
agentes responsáveis pela apuração dos fatos.
A fórmula exposta acima por nós, construída com a
colaboração dos mais importantes pensadores ao longo dos séculos, e que ainda
hoje é suscetível de adaptações, foi concebida pela observação dos mais
horrendos suplícios pelos quais o ser humano poderia passar nas mãos de
investigadores. A estes, os soberanos davam a incumbência de encontrar a
verdade real, e na busca desse objetivo tudo se justificava.
O procedimento padrão dentro desse sistema, durante a
santa inquisição, por exemplo, estava calcado no confisco do réu perante a
sociedade, no segredo sobre acusações e investigações, além do emprego de
tortura com vistas àquilo que legitimava essas atrocidades: a obtenção da
perseguida verdade real.
No Brasil, precisamos reconhecer que sistemas
completamente contrários a uma democracia plena, como o acima exposto,
dominaram o país de Cabral até 1988. Nossa estrutura de investigação criminal
tinha 488 anos de vida quando surgiu a Constituição que hoje vige, sendo
natural, o que não pode ser normal, que atualmente uma “mentalidade inquisitiva”
ainda tenha significativa influência nesse processo.
Tramitam no Congresso Nacional, importante ressaltar, os
projetos do novo código penal e do novo código de processo penal brasileiro.
Mais de vinte anos após o advento da Constituição, que estabelece um Estado
regido pelos princípios democráticos, continuamos sob a égide de procedimentos
investigativos cuja base se encontra em códigos com mais de 70 anos.
Mesmo com as reformas sofridas ao longo dos anos nesses
diplomas, uma postura inquisitorial ainda permeia a atuação de grande parte de
agentes estatais nesse particular. De nada adianta operar modificações pontuais,
a pretexto de “atualização” se as interpretações continuam sendo influenciadas pelo
autoritarismo do sistema antigo.
A quebra radical desse paradigma
é o que se verifica na teoria propalada pelo professor italiano Luigi Ferrajoli.
Romper com as bases do sistema jurídico inquisitivo ou de qualquer outro que
não tenha por fundamento o respeito aos direitos humanos, entrelaçando, para
isso, a ciência jurídica, a ciência política, e a filosofia, fundando, assim,
as bases de um verdadeiro estado democrático e garantista de direito.
Aproximar ao máximo possível o
“ser” do “dever ser” é uma das obstinações de Ferrajoli com a sua teoria do
Garantismo, onde sugere uma importante transformação nos sistemas estatais,
valorizando os irrenunciáveis direitos humanos, sobretudo diante dessa
cobrança social frenética pela resolução de conflitos com a utilização do
Direito Penal, que deveria ser mínimo.
Essa teoria, por fim, perpassa
por toda uma gama de conceitos e ciências que lhes garantem uma complexidade
estrutural digna das mais respeitadas teorias do Direito na atualidade.
Ferrajoli, por oportuno, aproxima-se dos contratualistas (cujo conceito central
é a valorização do indivíduo), como Jonh Locke, e propõe uma perspectiva de
resolução de conflitos sempre baseada em princípios.
Nas lições do professor Aury Lopes Jr, o Garantismo prega
uma instrumentalidade constitucional, uma radicalização dos direitos
fundamentais, constitucionais e democráticos, o fortalecimento do “eu” como
democracia substancial.
Não temos, nessa apertada síntese, a pretensão de transmitir
toda a dimensão da tese garantista defendida por Ferrajoli em seu “Direito e
razão”, nem pretendemos impô-la como a única saída para as mazelas que
encontramos na investigação criminal brasileira, ainda influenciada pelas
ideias inquisitivas, mas é um debate que se inicia com boas perspectivas de nos
aproximarmos da essência do texto constitucional atualmente vigente.
Há, penso, diante do quadro de desespero do Estado de
atender as cobranças da sociedade na área de segurança pública, um convite
inadiável ao debate franco, sincero e desapaixonado de nosso sistema de
investigação criminal. As penas aumentam, os tipos penais se multiplicam, os
presídios proliferam, as polícias, o ministério público e o próprio judiciário
atuam com mais rigor e determinação, mas a criminalidade continua crescente,
quando pela lógica das posturas adotadas deveria apresentar declínio.
Apresentamos nitidamente um quadro de involução, onde a
obstinação dos aparelhos estatais, até como forma de escamotear suas próprias deficiências
em outras áreas, não é mais a verdade real da velha e conhecida inquisição, mas
a satisfação do sentimento de impunidade imerso na sociedade.
Para essa
satisfação do bem geral, temos assistido sem nos dar conta do perigo que se
avizinha, aquele mesmo perigo que se fez real na santa inquisição, com o
esvaziamento de garantias fundamentais.
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