O surgimento de um fato humano indesejado sob a perspectiva
legal, que tenha o potencial de causar instabilidade social, atrai, de regra, a
atenção de todo o aparelho investigativo estatal, deflagrando o que se denomina
tecnicamente de persecução penal, com características próprias de um jogo.
É justamente nesse momento que testemunhamos o nascimento do
“jogo processual”, que se destina à resolução desse conflito.
Nesse tipo de jogo, necessariamente iluminado pelos
princípios democráticos fundadores de nossa Constituição, deve o Estado
proporcionar aos participantes com interesse direto na causa, que atuarão como
contendores, condições e instrumentos iguais na construção de suas teses, o que
acabou sendo negligenciado em nosso Código de Processo Penal sob a influência
fascista.
Somente uma igualdade substancial (além da observância de outras garantias, obviamente), de conteúdo e forma, legitima
o resultado de uma investigação criminal em qualquer âmbito, administrativo ou
processual, assim como a desconsideração disto o deixa passível de invalidade.
De nada adianta termos um núcleo de garantias limitadoras do
poder punitivo do Estado estabelecido em nosso sistema constitucional se o
involucro camufla ou impede que esse conteúdo seja irradiado, podendo surtir os
efeitos garantidores desejados.
Importa ressaltar ainda, que a construção do conhecimento e,
por consequência, da convicção do julgador, passa por uma cadeia complexa de
eventos. Nesse processo, é inegável a influência determinante dos estímulos
externos aos nossos órgãos sensoriais, especialmente a visão e a audição.
Dessa forma, reconhecer que a estética da igualdade interfere
contundentemente na apuração de uma infração penal é exercício de pura lógica. A
aparência, além das garantias substanciais, é, portanto, algo que deve ser
preservado pelos participantes da marcha processual, sobretudo por quem tem o
dever de presidi-la.
A existência de "competidor" com aparentes privilégios em um
determinado jogo traz sim comprometimento a uma análise verdadeiramente
imparcial sobre o conflito, influenciando, inclusive, o próprio julgador, como
ente imerso numa sociedade leiga descomprometida com as provas carreadas aos
autos.
A construção do senso comum como forma de interpretar a
realidade baseada nessa aparência pode acabar impregnando a convicção do
magistrado em detrimento dos elementos formal e legitimamente colhidos durante
a investigação. O julgamento não está imune às convicções que o magistrado
carrega de sua imersão social ao processo.
Essa preocupação é ainda maior no tribunal do júri, quando a
decisão é colocada nas mãos dessa mesma sociedade leiga. Nesse aspecto, nossa
crítica não recai sobre uma ou outra instituição isoladamente, mas sobre todos
os atores envolvidos na manutenção de determinados costumes inquisitivos que
atentam contra a igualdade de fato.
Sobre esse tema, interessante formulação faz o professor
Adel El Tasse em suas aulas. Ao adentrar ao salão do tribunal do júri em uma
sessão já iniciada você verá, de regra, as partes dispostas da seguinte maneira
no plenário: ao lado do juiz, que é a referência de padrão moral para todos,
especialmente para os jurados, estará o promotor, que ainda se posiciona
próximo aos jurados, do outro lado, mas não ao lado do magistrado, ao canto, o
advogado acompanhado do réu, muitas vezes algemado, com a farda do
estabelecimento prisional e rodeado de policiais. Qual a dificuldade que
qualquer pessoa teria para escolher um lado nesse "jogo"? Nenhuma! O cenário
de gênese inquisitiva montado aponta claramente a saída.
Um julgamento influenciado pelas aparências representa uma perigosa
corrosão de garantias construídas ao longo da história para limitar o poder
punitivo do Estado. A situação é tão grave, que nos dias de hoje, por conta do
que cada conflito aparenta ter como resultado provável, observamos, não raras
vezes, situações em que antes de investigar as autoridades já possuem teses
prontas e passam a agir apenas para construir elementos que reforcem as suas
teses pré-estabelecidas.
Para reforçar a necessidade de um cuidado maior com o
caminho que percorremos em um processo penal e as falsas impressões que dele
vamos absorvendo, recorro ao exemplo do mestre norte-americano Ronald Dworkin quando analisava a
técnica do equilíbrio nas teorias da justiça, em seu “Levando os direitos a
sério”, disse ele: “Consideremos, para tornar um exemplo conhecido, as ilusões de ótica ou
as alucinações. É perfeitamente verdadeiro que o cientista que vê água na areia
não diz que o açude estava realmente ali, até que ele o alcançasse, de modo que
a física devesse ser revista para dar conta do desaparecimento da água. Ao
contrario, ele utiliza o aparente desaparecimento como prova de uma ilusão, ou
seja, como prova de que, contrariamente a sua observação, ali nunca houve água
alguma”.
É tarefa de todo cientista do Direito, buscar a adequação do
sistema de investigação criminal às garantias constitucionais, como a busca
pela paridade de armas, consequência desta igualdade substancial, e não o
contrário, adequando às garantias consolidadas a necessidades de dar eventuais
respostas aos “anseios” da sociedade.
O projeto de lei 156/2009 tramitando no Senado, que discute
o novo Código de Processo Penal, adota modelo parecido com o sistema italiano, português
e chileno, onde se possibilita uma investigação criminal defensiva, com uma participação
mais efetiva do advogado em todas as fases da persecução, privilegiando a
defesa com as possibilidades hoje ofertadas à acusação.
Parece-nos, mantendo-se essas bases no novo Código
Processual, ingressaremos em uma nova era no processo penal brasileiro, a era
de um sistema verdadeiramente acusatório garantista.
Mais uma vez, para concluirmos, é lapidar a lição de Dworkin: “Se não podemos
exigir que o governo chegue a respostas corretas sobre os direitos de seus cidadãos,
podemos ao menos exigir que o tente. Podemos exigir que leve os direitos a
sério, que siga um teoria coerente sobre a natureza desses direitos, e que aja
de maneira consistente com suas próprias convicções”.
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